terça-feira, 16 de setembro de 2008

0551) O Natal de Raymond Chandler (24.12.2004)




O Natal se aproxima, com seu problemático coquetel de confraternizações e melancolias. Depois de uma certa idade, é o Natal que se transforma em nosso verdadeiro Dia de Finados. Por mais que a gente passe assobiando pelo tumular 2 de novembro, quando chega o Natal não tem remédio, a casa (ou pelo menos a memória) se enche de fantasmas. Estavam dormindo em paz nos oceanos do oblívio e lá vai a nossa saudade masoquista a despertá-los, trazê-los de volta à sala de visitas, para o milésimo flash-back dos tempos-felizes-que-não-voltam-mais.

Certa vez comentei aqui (“Uísque: cimento”, 31.7.2003) uma frase de Raymond Chandler que é talvez uma das mais cruéis que já se escreveram sobre esta data: “O Natal se aproxima, trazendo consigo todos os seus horrores ancestrais.” Chandler bem que tinha seus motivos para se arrepiar à simples audição de “Jingle Bells”. Viveu seus últimos dias na Califórnia, aquela mistura de shopping-center e zoológico humano, que provocava náuseas em seu lado aristocrático. Dizia ele: “As lojas estão cheias de um lixo inacreditável, e tudo que você procura já se esgotou. Pessoas com expressões tensas e agoniadas no rosto ficam examinando peças em vidro ou cerâmica, e sendo atendidas, se esta é a expressão correta, por débeis mentais que foram recrutados quando estavam em liberdade condicional do hospício, e que, se fizerem um enorme esforço, serão capazes de distinguir entre uma picareta e um bule de chá.”

Chandler tinha seus problemas. Sua mulher, Cissy, bem mais velha do que ele, teve uma longa e dolorosa doença pulmonar que acabou por matá-la em 1954. No final de 1951, Chandler escrevia ao seu agente literário Carl Brandt: “Tivemos um péssimo Natal. A cozinheira adoeceu, não fizemos peru, e minha mulher ou está de cama ou repousando a maior parte do tempo, tentando combater uma bronquite renitente. Swanie me mandou uma gravata de presente. É toda estampada com pequenos sherlock-holmes e pegadas sangrentas. Gostaria que os agentes de Hollywood não se sentissem obrigados a presentear seus clientes, até porque esses presentes são um termômetro muito fiel do status desses clientes. Um sujeito que chegou ao ponto de receber relógios de pulso e de repente volta a ganhar gravatas sabe exatamente qual está sendo sua cotação no mercado.”

Não, a culpa não é do Natal, é do que acontece no resto do ano. Em 1952, Chandler escreveria, desta vez para o crítico inglês Leonard Russell: “Minha mulher está muito doente. Ela já voltou do hospital, mas ainda está muito fraca e continua acamada. Por causa disto resolvemos esquecer o Natal este ano, inclusive os cartões. Então, deixe-me desejar a você e a Dilly Powell o que quer que ainda exista de paz e felicidade neste mundo triste: coisas como crepúsculos vermelhos, o cheiro de rosas após uma chuva de verão, tapetes macios em aposentos tranqüilos, a luz de uma lareira, a presença de velhos amigos.”

Feliz Natal para todos.

0550) Outro doido na porta (23.12.2004)





(pt.inmagine.com)

O escritor Tim Powers conta de um tio seu que trabalhava numa repartição pública onde de vez em quando, por algum motivo, aparecia gente doida atrás de emprego. 

Uma vez um desses malucos baixou por lá e começou uma conversa que não acabava mais. Lá pelas tantas, começou a se queixar de que estava sofrendo interferências telepáticas de gente desconhecida. “Ficam invadindo minha mente, mandando energia negativa,” queixou-se ele. 

O tio de Powers teve uma idéia brilhante. Pegou uma correntinha de clips que alguém estivera fazendo, pendurou mais uma dúzia de clips na ponta e estendeu para o cara. 

“Ponha isso em volta do tornozelo,” explicou, “prenda, dando um nó, e aí deixe a ponta mais comprida arrastar pelo chão.” 

O doido pegou a correntinha, ainda meio na dúvida: “Mas para que?” 

Ele respondeu: “Ora, já ouviu falar em fio-terra? Com isso, as emissões telepáticas vão passar direto para o chão, sem lhe afetar.” 

O doido só faltou beijar-lhe as mãos, amarrou a correntinha no tornozelo e foi-se embora feliz da vida.

O remédio pra um doido é outro na porta, diz a sabedoria popular. Isto é apenas o reconhecimento de que para dialogar com uma pessoa é preciso entender o pensamento dela, ou, como dizem os filósofos de verdade, “trabalhar com as mesmas categorias conceituais”. 

Cada doido funciona de um modo diferente. Um amigo meu, quando era estudante de Medicina, estava dando plantão num hospital psiquiátrico, e de madrugada um paciente que sofria de “delirium tremens” começou a gritar. Ele foi ver o que era, e o cara estava encolhido no canto do quarto, dando tapas nos próprios braços: “As aranhas, doutor... Eu estou coberto de aranhas!” Ele explicou: “Calma, Fulano, vou lhe dar um remédio, mas não tenha medo. Elas não existem.” O paciente retrucou: “Eu sei que não existem, doutor, mas são muitas!”

Há numerosos episódios na história da Psicologia e da Psicanálise de médicos que, para melhor adquirir a confiança e a empatia de seus pacientes, procuram identificar-se com seus delírios e, a partir de certa altura, começam a ter dificuldade para tocar no chão com os próprios pés. 

Existe uma lógica perversa e sedutora no modo como a mente dos loucos encaixa idéias umas nas outras, principalmente nas articulações lógicas dos delírios paranóicos. Um paranóico é um cara que apela para o que temos de mais perigoso em nossa mente, que é o sentido de causa e efeito, de concatenação lógica. 

Tudo que um paranóico diz faz sentido, porque todas as suas deduções ou induções são rigorosamente lógicas. A única maneira de invalidá-las é descobrir, no emaranhado de premissas com que ele nos desorienta, quais são as que não correspondem à realidade.

Raciocinar junto com um louco é como mergulhar no mar revolto para salvar uma pessoa que está se afogando. No momento em que os dois se abraçam e se debatem juntos, alguém vai levar alguém em alguma direção, e é um sujeito muito corajoso o que paga pra ver.







0549) De Fellini a Almodóvar (22.12.2004)


(Má Educação)

A obra de Federico Fellini, como a de Pedro Almodóvar, está cheia de prostitutas barrocas, homossexuais patéticos, padres enrustidamente libidinosos. Personagens que de início são vistos com zombaria infantil e depois com um espécie de cumplicidade madura. Parece que o autor, ao ficar mais velho, entende melhor as motivações daqueles personagens, cujo ridículo e tragédia vai se diluindo. Fellini foi substituindo a perplexidade excitada de um garoto, presente em Oito e Meio, A Doce Vida, Satyricon, pelo carinho paternal com que tais personagens grotescos são vistos entre Amarcord e E la Nave Va.

O espanhol Pedro Almodóvar tem uma predileção semelhante por este elenco de figuras excêntricas, e quando falamos de repressão católica, sexualidade latina e imaginação delirante, faz muita diferença ser espanhol ou italiano? Muito pouca. Em Almodóvar, no entanto, essas personagens mostram um lado mais dark, mais cruel. São capazes de praticar ações ou de arquitetar planos que nos fazem recuar com um calafrio. Soltar os travestis e os gays de Almodóvar num filme de Fellini seria o mesmo que soltar um tigre faminto num orfanato.

Vendo o recente Má educação, a idéia que me vem é que Almodóvar, mesmo com sua fascinação pelo bizarro e pelo grotesco, é menos um herdeiro de Fellini do que da secura emocional de Pasolini, de sua visão do sexo como um jogo de poder e fantasia onde o mais forte sempre desfruta o mais fraco e depois o descarta. E é mérito da riqueza psicológica da obra de ambos o fato de que muitas vezes são os personagens “do Bem” que fazem isto aos personagens “do Mal”.

Faço esta comparação porque a maioria da crítica cinematográfica insiste em tentar aproximar Almodóvar de Buñuel e de Carlos Saura, pelo fato de serem todos espanhóis, quando me parece mais relevante a afinidade de espíritos do que a coincidência de passaportes. Se existe algo de buñuelesco em Almodóvar isto se deve à semelhança que apontei no parágrafo anterior entre a trajetória repressiva e ambígua da Igreja Católica tanto na Espanha quanto na Itália (para não falar em outros países). Ao que parece, nenhum desses garotos que estudou em colégio de padres escapou incólume, quando mais não seja em seu imaginário. Mas o perfil emocional de Almodóvar, que tende sempre para a auto-confissão, o desnudamento, o exibicionismo, não se parece nem um pouco com o de Buñuel, um homem fechado em copas, rigidamente moralista.

Os filmes de Buñuel são lutas íntimas, sempre empatadas, entre um anarquista e um conservador. Os de Almodóvar são a celebração pública do triunfo de um sujeito reprimido que “soltou a franga” e não conhece mais limites. Má educação é um bom filme, mas em muitos momentos está mais próximo da superficialidade do “teatro de simulacros” de Brian de Palma. Talvez as melhores obras do cineasta, as de mais riqueza estilística e temática, continuem sendo Tudo sobre minha mãe e Carne trêmula.