terça-feira, 27 de maio de 2008

0407) 80 anos de Osman Lins (9.7.2004)



Neste julho comemoram-se os 80 anos de Osman Lins, que faleceu em 1978. Fiquei sabendo, através de uma matéria recente de André de Sena aqui no JPb, que dois livros estão sendo lançados em Pernambuco, ambos reunindo ensaios sobre sua obra: Osman Lins: o sopro na argila, organizado por Hugo Almeida, e Vitral ao sol, reunindo ensaios surgidos no Departamento de Letras da UFPe. Estes títulos vêm se juntar a A garganta das coisas de Regina Dalcastagnè, Osman Lins: uma biografia literária de Regina Igel, Osman Lins: crítica e criação de Ana Luiza Andrade, e certamente outros que ignoro.

Não conheço muita gente, no Brasil ou fora dele, que tenha escrito uma prosa no mesmo nível de tensão poética da prosa de Osman. Chamo de tensão poética àquela sensação que nos produz uma frase carregada de significado e de linguagem alusiva, diferente destas frases discursivas e lineares que estou enfileirando aqui. A prosa de Osman Lins é o que poderíamos chamar de “prosa poética”, se bem que esse estilo tende a ser uma prosa maneirista, rebuscada. Osman projeta tensão poética em tudo que escreve. Tem um grau extremado de riqueza vocabular e rigor sintático; sua imaginação visual é sem limites; sua competência como contador de histórias está fora de questão. E, por cima de tudo isto, a melhor expressão para descrever seu texto é: um arrebatamento verbal.

“Não viverei sequer mil anos, minha vida é rápida, risco no tempo, tal como um peixe salta um dia acima da vastidão do mar e vê o Sol e um arquipélago onde se movem cabras entre as rochas, assim eu salto da eternidade, como todos, eis-me no ar, vejo o mundo dos homens, logo voltarei aos abismos marinhos.” (Avalovara) Uma das mais consistentes contribuições de Osman a nossa prosa foi ter corporificado como ninguém o conceito do tempo espacializado. Suas histórias acontecem numa espécie de “eterno presente”, onde passado e futuro coexistem, lado a lado, e são avistados simultaneamente pelo narrador que faz passear sobre o Tempo o seu olhar implacável, e nos descreve o que vê acontecendo.

Osman cometeu três pecados graves no cenário literário brasileiro. O primeiro foi escrever tão bem; os prosadores pedestres não perdoam. O segundo foi fazer sucesso: Avalovara teve uma tremenda campanha publicitária da editora Melhoramentos, até out-door saiu. Seus livros foram traduzidos e elogiados na Europa, outra coisa que deixa muitos coleguinhas desconfortáveis. E o terceiro erro foi ter sido um sujeito combativo, sem papas na língua, que detestava hipocrisias. Em Guerra sem testemunhas e Evangelho na taba: problemas inculturais brasileiros, ele “passou o rodo” nas editoras, nos críticos, nas universidades, nos livros didáticos, na feira-das-vaidades... Para muita gente é mais cômodo fazer de conta que ele nunca existiu. Mas existiu, sim. Subiu o nível da literatura brasileira, e embelezou como ninguém a tapeçaria do Tempo.

0406) O bilhete 500.000 (8.7.2004)




Você compraria um bilhete de loteria com o número 500.000?. Eu mesmo não. Por quê? Ao ver um número assim, tão redondo, a primeira coisa que imagino é que dificilmente um número como este vai ser sorteado. É certinho demais. Muito mais provável me parece um número como por exemplo 472.648. Este sim, tem cara de número sorteado aleatoriamente; mas eu pensaria duas vezes antes de comprar um bilhete como 333.333 ou então 123.456.

O sorteio destes números é feito através de gaiolas gradeadas que giram, cheias de bolinhas numeradas, todas do mesmo tamanho, formato e peso. As bolinhas se entrechocam no interior das gaiolas, e quando estas se imobilizam é praticamente impossível (num sorteio honesto, é claro) que a bolinha a ser extraída pela abertura inferior tenha sido influenciada por algum fator externo. 

Ou seja: existe uma probabilidade rigorosamente igual de que qualquer uma das bolinhas venha a ser extraída. Cada algarismo do número do bilhete é sorteado desta forma.

Existe um velho princípio no estudo das probabilidades, contudo, que diz: “Moeda não tem memória”. Quando jogamos uma moeda ao ar para tirar cara-ou-coroa este fenômeno físico é independente de todos que já tenham acontecido antes. A probabilidade de dar cara ou coroa num lance isolado é de 50%. 

Se jogarmos a moeda mil vezes e obtivermos mil vezes o resultado “cara”, isto não quer dizer que na próxima vez é mais provável que ocorra cara (“porque está ocorrendo muito”) ou coroa (“porque faz tempo que não ocorre”). A moeda não sabe o que saiu antes; cada lance recomeça tudo do zero. E o mesmo se aplica ao sorteio das bolinhas.

Então, por que desconfiamos de um número redondo? Por que o achamos tão improvável, se em tese ele é tão provável quanto qualquer outro? Acho que é porque desconfiamos da possibilidade de que o Caos gere a Ordem. Números escolhidos aleatoriamente devem refletir essa “aleatoriedade” através de uma mistura confusa e sem padrões discerníveis. Se uma série de seis sorteios mecânicos, independentes entre si, gera um número como 444.555, achamos que alguma coisa deve estar errada.

A verdade é que toda as vezes que alguém compra um bilhete de loteria, ou aposta na Mega-Sena, quem está em jogo não é o pensamento lógico, e sim o pensamento mágico. O pensamento lógico nos aconselharia a usar aquele dinheiro para comprar um sorvete ou um gibi. Alguma coisa que nos desse um resultado imediato, um fim mais concreto. 

Quando apostamos, temos a crença de que uma combinação cósmica de circunstâncias favoráveis fará com que as bolinhas certas saiam na ordem certa, trazendo-nos a fortuna. É bem verdade que a cada semana esta expectativa é desfeita, mas assim como um cientista faz mil experiências mal sucedidas até obter o resultado que procura, um indivíduo que se rege pelo pensamento mágico acredita que o alinhamento-dos-planetas ou coisa parecida irá ocorrer da próxima vez. E compra um bilhete com as datas de nascimento dele, da mulher e dos filhos.






0405) Os bandidos regenerados (7.7.2004)




("Tiradentes esquartejado" de Pedro Américo)

D. João VI ficaria muito surpreso se pegasse uma máquina do tempo, visitasse o século 21, e descobrisse que o Brasil está cheio de estátuas em homenagem a Tiradentes, e nenhuma em homenagem a ele (se existir me avisem, porque desconheço). Pensaria o bom soberano: “Varei! O sujeito é imperador e não ganha uma estátua; quem ganha estátua são os marginais, os subversivos”. Teria razão em pensar assim. A Roda da História é como a Roda da Fortuna do Tarot, onde há sempre alguém subindo e alguém descendo, de acordo com o ir e vir das marés da política. O herói de hoje é o tirano de amanhã, e vice- versa. Tiradentes foi esquartejado, e teve seus despojos pregados ao longo das estradas de Minas para servir de advertência. Esse corpo despedaçado aparece hoje simbolicamente restaurado: refundido em chumbo, recomposto em mármore.

O mesmo vale para Lampião, que ainda hoje desperta no Nordeste reações extremadas de veneração e ódio. O mito de Lampião encarna virtudes de que o nordestino se envaidece: coragem, obstinação, esperteza, brabeza de macho, etc. Depois que o indivíduo é reduzido a pó e história, o Mito se limpa de suas imperfeições humanas, e se cristaliza muitas vezes como um conjunto de qualidades que talvez surpreendesse até o próprio objeto desse culto.

As estátuas de Tiradentes são hoje uma unanimidade no Brasil: ninguém questiona seu merecimento. Se alguém decidisse erigir uma estátua a Carlos Lamarca ou a Marighella, terroristas mortos pela ditadura militar, certamente haveria protestos aqui e acolá, mas sem dúvida grande parte da imprensa (e do Congresso Nacional) seria a favor. Depois que a ditadura se desmanchou em sua própria incompetência e corrupção, a opinião pública ficou liberada para achar que esses indivíduos não são criminosos, são heróis. Talvez heróis que tenham escolhido uma linha equivocada de ação política, mas heróis pela coragem de lutar uma luta desigual e suicida.

Fico me perguntando que caminhos percorrerá a evolução da consciência social brasileira. Quem serão os heróis do nosso tempo que merecerão estátuas em praça pública, nome nas praças, efígie em selos ou moedas? Claro que certos figurões (Brizola, Lula, Fernando Henrique, etc.) têm grandes chances de ganhar homenagens assim. Mas, quem serão as zebras? Quem serão os bandidos regenerados do futuro, quem serão os ex-marginais a terem sua imagem redimida? Não creio que gangsters como Fernandinho Beira-Mar ou Escadinha venham a ganhar tais honrarias, mas lembrem-se, tem gente que defende uma estátua para Lampião, que as elites brasileiras viam com os mesmos olhos com que vêem hoje os alcapones do tráfico. Os caminhos da História são surpreendentes. Ah, eu trocaria 24 horas de minha vida atual pela chance de viver essas 24 horas no ano 2104, andar pelas praças, olhar os mapas de nossas cidades, recensear as homenagens, e refletir um pouco sobre as crueldades e as ironias que o futuro nos reserva.


0404) Abaixo o prazer (6.7.2004)




("El Hedonismo" de Ana Roldán)

Em artigos recentes meti o porrete em vacas sagradas como a Liberdade e a Amizade. Apertem os cintos, porque hoje vou desancar o Prazer, este conceito que, usado de uma maneira distorcida e maléfica, está estragando o mundo. Não pensem que sou masoquista ou que quero transformar a vida num vale de lágrimas ou num muro das lamentações. O prazer é importantíssimo na minha vida. É tão fundamental quanto, digamos, o café recém-passado. Mas minha mãe sempre disse, sabiamente, que “tudo demais é veneno”. E prazer demais é o que está envenenando nossos conceitos, nossa sociedade, nossa vida em comum. Erigiu-se o prazer como um Bem em si, como a finalidade principal da vida, como um direito de todos. Até aí tudo bem, mas parece que a primeira consequência que todo mundo tira disto é que o Prazer é um fim que justifica quaisquer meios. O que vemos, então, é uma busca frenética e desenfreada do prazer a todo custo.

É a busca do Prazer, por exemplo, que alimenta toda a indústria da corrupção, que faz do Brasil um dos países onde mais se rouba no mundo. Cada máfia administrativa que é desmascarada pela imprensa e pelo Ministério Público tem à frente uma dúzia de indivíduos que à primeira vista parecem sequiosos de fortuna, de poder. Mas se a gente observar bem, eles são apenas a ponta de um iceberg de parentes, amigos e apaniguados que prosperam às suas custas. O dinheiro acumulado nos golpes e nas falcatruas tem como destino final viagens para Miami, noitadas em Las Vegas, cruzeiros pelo Caribe, ou sei lá como é que esse povo se diverte. O fraudador ou o desviador de verbas é um dos grandes acionistas da indústria do lazer, da boa-vida, da ostentação, do gasto supérfluo. (Sim, eu sei – gente honesta também gosta disso, mas tenho a impressão de que gente trambiqueira gosta muito mais.)

E o que dizer da indústria da droga? Algumas pessoas usam drogas por modismo, outras por status; mas a esmagadora maioria usa por prazer. A droga proporciona um prazer intenso, instantâneo, sem compromisso, e facilmente repetível – desde que você tenha grana para comprá-la indefinidamente. É este último quesito que transforma a droga num problema social, porque se o sujeito quisesse apenas entupir-se dela até cair duro era problema só dele.

Criamos uma civilização baseada no prazer, e não há nada mais egoísta do que o prazer, ou pelo menos, o tipo de prazer instantâneo que nossa civilização estabeleceu como modelo – na publicidade, e na indústria do lazer e do entretenimento. Criamos uma civilização suicida. Em 1958, o psicólogo James Ochs prendeu um eletrodo aos centros de prazer do cérebro de um rato, os quais eram estimulados quando o rato apertava uma barrinha metálica na jaula. Houve o caso de um rato que apertou a barra numa média de 2 mil vezes por hora, durante mais de 24 horas, sem parar para comer ou beber, até cair de exaustão. Guardadas as devidas proporções, é o que as elites brasileiras estão fazendo.