segunda-feira, 7 de abril de 2008

0354) Calvino e a rapidez (8.5.2004)




(Ítalo Calvino)

Em Seis propostas para o próximo milênio, uma das qualidades literárias que Ítalo Calvino nos propõe deixar para os séculos futuros é a rapidez. 

O escritor italiano usa como exemplo de “rapidez literária” os contos folclóricos, material que ele retrabalhou a fundo em seu livro Fábulas Italianas, e que ele define como um campo de força criado pela presença de eventos que se influenciam e se determinam uns aos outros. 

Ele dá como exemplo uma história onde o imperador Carlos Magno se apaixona por uma dama, paixão que se prolonga mesmo depois que ela morre. Ele se recusa a separar-se do cadáver, até que um bispo examina a morta e retira de sob sua língua um anel mágico. Quando o anel passa às mãos do bispo, o imperador apaixona-se por este; o anel é atirado a um lago, e o imperador passa a dedicar ao lago sua paixão, nunca mais abandonando suas margens.

Calvino elogia essa “economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto”. 

Para ele, a arte do conto é a arte de contrair e dilatar o tempo narrativo, eliminando tudo que é supérfluo, tudo que não traz substância ficcional. 

Ele próprio reconhece que nos contos populares o conceito de “supérfluo” é problemático, pois neles tanto surgem saltos bruscos de anos ou séculos, quanto repetições ou enumerações de algo já narrado ou descrito, as quais guardam, no entanto, certo poder encantatório ou musical.

Ao examinar a rapidez na criação literária, Calvino faz uma avaliação que serve com justeza à nossa arte nordestina do Repente: 

“A velocidade mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis a esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza”. 

Ele acredita que tanto a poesia quanto a prosa são uma busca “de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável”; e que as formas curtas características de nossa época prestam-se (embora não exclusivamente) a esse tipo de expressão.

A rapidez não é inimiga da perfeição, e sim da pressa. Ela é “uma fulguração repentina”, mas que em regra geral implica uma paciente procura do “mot juste”, da palavra exata. 

Calvino encerra seu ensaio com a história do pintor chinês a quem o rei encomendou a pintura de um caranguejo. Primeiro ele pediu (além de dinheiro, casa, criados) cinco anos de prazo. Ao fim de cinco anos, sem ter sequer pegado no pincel, pediu mais dez. O rei, impaciente, os concedeu. Esgotado o segundo prazo, o rei foi ao seu ateliê. Ao ver o monarca entrar, o artista o saudou, pegou o pincel, “e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu”.





0353) Qual é o teu preço? (7.5.2004)



(Tom Waits)

Zeca Pagodinho é muito esperto, hem? Primeiro, inventou que era um grande bebedor de Brahma. Esta isca atraiu a Schincariol, que o convidou para o famoso comercial do “Experimenta!”. Zeca experimentou, assinou um contrato, e começou a faturar. Mas aí (diz ele) deu uma saudade danada da Brahma; e Nizan Guanaes foi até o sítio dele (convidado por quem, meu Deus?) e lhe propôs um retorno à Brahma e ao horário nobre, com o comercial onde ele falava do “amor de verão”. Resultado: bebeu das duas e faturou das duas. Quanto à credibilidade dele, bem, da minha parte a única coisa que muda é que eu pensava que ele gostava mais de cerveja do que de dinheiro, e agora estou em dúvida.

Quando um sujeito diz que é capaz de ganhar qualquer tipo de dinheiro, começa a aparecer todo tipo de proposta, e daí para ele estar aceitando todas é só uma questão de tempo. Mesmo assim, John Densmore, ex-baterista do grupo The Doors, publicou em “The Nation” um artigo onde explicava por que motivo sempre vetava o uso de músicas do grupo em comerciais, mesmo que isto gerasse conflitos com os remanescentes da banda (cuja carreira afundou após a morte do vocalista Jim Morrison em 1971). Diz ele: “Para mim é mais do que claro que não devemos fazê-lo. Não precisamos do dinheiro. Mas é claro que toda vez que a gente recusa, os caras dobram a proposta!”

Em resposta ao seu artigo, o cantor e compositor Tom Waits (aquele que toca piano, usa uma barbicha-de-bode e tem a voz de Louis Armstrong) mandou uma carta dizendo: “Canções contêm informação emotiva, e algumas delas nos levam de volta a tempos, lugares ou eventos decisivos em nossa vida. Não admira que as corporações queiram pegar carona no poder deste encantamento, para convencer você a comprar refrigerantes, roupas íntimas ou carros, enquanto dura o seu transe. Artistas que vendem suas canções para a publicidade estão envenenando e pervertendo essas obras. Lembre-se: quando você vende suas canções para um comercial, está vendendo também o seu público.” E finaliza: “O que as corporações querem é seqüestrar nossa memória cultural para nos obrigar a comprar os seus produtos.”

Nelson Rodrigues dizia que o dinheiro compra tudo, até amor sincero. Aqui no Brasil Tom Jobim quase foi linchado em cadeia nacional quando vendeu os direitos da canção “Águas de março” para um comercial de Coca-Cola. Eu confesso que não vi essa negociação com a maior das simpatias, mas eu já vendi tanta coisa minha por uma merreca, como posso questionar quem vende as suas por uma fortuna? Tudo tem um preço? Tem. O que não tem no mundo é megacorporações que possam pagar o quanto certos artistas valem. Como dizia Machado de Assis, se for para se sujar, suje-se gordo!


Por isso que no dia em que alguém perguntar por quanto eu cedo uma música minha, digo, na lata: “Me dá 500 milhões de dólares, e eu assino agora mesmo.”

0352) Generalizações apressadas (6.5.2004)




Lembro de uma brincadeira muito usada na década de 1970. Quando alguém dizia: “Ah, que é isso, você está fazendo uma generalização apressada”, a resposta sempre era: “Generalização apressada é golpe de Estado na América Latina.” Os mais jovens talvez não captem o espírito da coisa, porque já faz algum tempo que um bando de generais não toma o poder do dia para a noite em nosso continente, mas o vício conceitual continua incrustado em nossa prática. Eu mesmo sou um reincidente obstinado em generalizações imprudentes, ainda mais quando escrevo estas colunas a-toque-de-caixa, de-afogadilho, em-cima-da-perna.

Dias atrás cometi novamente esse pequeno delito, ao criticar o linguajar abstruso posto em prática em alguns setores de nosso mundo acadêmico (“O método de Josué”, 18.2.2004; “O novo latim”, 20.2.2004). Falei, por exemplo, que os nossos cursos universitários de Letras obrigam os alunos a decorar um jargão estruturalista obscuro e que nada acrescenta ao entendimento literário de um texto. Foi uma generalização desajeitada. Falei que quem faz isto são os cursos de Letras, e, de fato, não o fazem os cursos de Engenharia Elétrica nem tampouco os de Odontologia. Por outro lado, faltou a necessária ressalva de que: 1) nem todos os cursos de Letras fazem isto; 2) isto não é tudo que os cursos de Letras fazem; 3) isto também é feito fora dos cursos de Letras – por exemplo, em Oficinas e Seminários literários dirigidos por pessoas que têm esse cacoete teórico.

Uma generalização apressada se assemelha a um preconceito, porque, como ele, tende a transferir para o Todo uma característica de uma de suas partes: “o povo brasileiro gosta de futebol”. O Preconceito o faz por decisão do falante, mas a generalização geralmente é só um escorregão lingüístico, um descuido. Generalizamos porque em geral nos falta tempo ou espaço para registrar cada nuance ou cada detalhe contraditório do que estamos descrevendo. Se eu digo “os eleitores de Lula andam insatisfeitos com o seu governo” decerto não me refiro à totalidade desse grupo, mesmo que a percentagem possa ser elevada.

Generalizar é necessário quando, ao invés de examinar uma situação concreta, tudo o que queremos é discutir um conceito, uma idéia abstrata, um princípio. Volta e meia estou afirmando aqui coisas que não são verdades cem-por-cento: que os EUA têm uma posição totalitária em relação a outros países; que a ficção científica é a ponta-de-lança da literatura mundial contemporânea; que a canção eletro-percussiva nordestina é uma nova síntese musical. É, mas nem sempre. Quando precisamos fazer alguma afirmação “macro”, de grande amplitude, temos que deixar de lado os casos especiais, as exceções. Daí a necessidade (que me imponho) do uso de termos como “em geral”, “quase tudo”, “a maior parte”, etc. Generalizar é resumir, e resumir é deixar algo de fora. Como tudo que é inevitável, deve ser feito com cuidado.

0351) Calvino e a leveza (5.5.2004)



(Foto de Gustavo Moura - detalhe)

Em Seis propostas para o próximo milênio (Cia. Das Letras), Ítalo Calvino examina algumas características que em sua opinião a literatura atual deveria incorporar à literatura dos próximos séculos.

Seriam seis conferências a se realizar na Universidade de Harvard (Massachussets, EUA); Calvino morreu antes de redigir a úlima que se intitularia “Consistência”.

As demais foram escritas mas não chegaram a ser apresentadas: “Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”. Um belo cardápio de valores estéticos, que aconselho à leitura e à reflexão.

Tomemos a leveza. Calvino não a transforma num valor absoluto, e reconhece duas vocações legítimas na literatura: “uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso”, e “a outra tende a comunicar peso à linguagem”. Ele ilustra estas tendências, respectivamente, com a obra dos poetas florentinos Guido Cavalcanti e Dante.

Na poesia do primeiro ele encontra entidades que o fascinam porque: 1) são levíssimas; 2) estão sempre em movimento; 3) são vetores de informação. Não é coincidência a semelhança com a figura do deus Mercúrio (comentado aqui em “O deus das coisas certas”, 10.3.2004, e em “Os heróis esquizóides”, 30.4.2004), o deus de asinhas nos pés e nos capacetes, protetor dos viajantes, dos mercadores, dos oradores e literatos. Calvino não esquece a materialidade das coisas, mas confessa-se fascinado pelo fato de que “o mundo repousa sobre entidades sutilíssimas”.

Cyrano de Bergerac, Swift e Giacomo Leopardi são alguns autores em que Calvino situa a metaforização da leveza a partir do século 18. A literatura se exprime em termos da astronomia, da libertação à força da gravidade, da conquista do espaço celeste como uma vitória.

Diz ele: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”. A leveza não é uma negação da materialidade do mundo, mas um uso consciente dessa materialidade para libertar-se o mais possível de suas limitações.

Penso que a leveza procurada por Calvino pode ser vislumbrada também na ginástica olímpica: argolas, barras assimétricas, cavalo, exercícios de solo... Corpos que se projetam no espaço usando o próprio peso como força propulsora.

Capoeiristas e dançarinos de “break” também desenvolvem essa técnica de projetar o corpo com um impulso inicial e em seguida “capitalizar” esse impulso, mantendo-o ativo com o emprego mínimo de pequenos esforços. Com imensa economia de gestos, vemos esses corpos executarem piruetas e cambalhotas, parecendo prestes a libertar-se por completo da gravidade.

Sondas espaciais que percorrem o sistema solar também fazem o mesmo, projetando-se rumo ao campo gravitacional de um planeta, sendo aceleradas por ele, e a seguir desviando-se com uma propulsão mínima de foguetes e seguindo em frente, numa série de “quedas” calculadas. A literatura de Calvino, também, parece aproximar-se da materialidade do mundo apenas para pegar impulso e decolar rumo ao espaço mágico que lhe é próprio.