quinta-feira, 27 de março de 2008

0310) O bei de Túnis (18.3.2004)




(Eça de Queiroz)

O bei de Túnis é um personagem familiar aos escritores que já sobreviveram graças ao jornalismo diário. “Bei” era o título dos governadores de província em Túnis, na época da dominação turca. 


Eça de Queiroz tinha uma coluna de jornal para a qual era preciso achar assunto diariamente. Um tarde, com o juízo zerado e o relógio galopando, lembrou-se por algum motivo do bei de Túnis e escreveu um artigo demolidor, acabando com o sujeito. Quando no outro dia lhe perguntaram a razão do ataque, confessou que era falta de assunto, e concluiu: “Não importa: em Túnis há sempre um bei. Desanquei-o.” 

“Bei de Túnis” virou sinônimo erudito para “bode expiatório” ou para “Pilatos no Credo”: é aquele coitado que não tem nada com a história, que não se chama Joaquim nem mora em Niterói, mas que acaba levando as bordoadas de alguém que precisava esbordoar as primeiras costas que aparecessem.

Sei dessa história desde pequeno, contada por meu pai. Por algum motivo sempre achei cômico visualizar a imagem de um político importante vivendo sua vida e tomando suas decisões, sem saber que do outro lado do mundo um jornalista anônimo está metendo o chanfalho nele, apenas para se desincumbir de uma tarefa. 

Toda as vezes em que me sentei à máquina de escrever para desancar os estúdios de Hollywood ou as multinacionais do disco, sempre pensei que, por mais sinceras que fossem as minhas diatribes, no fundo aquilo era apenas um bei de Túnis que me ajudava a ir para casa mais cedo.

O episódio do bei de Túnis, contudo, me parece ter uma relação oculta com outra história de Eça, uma das mais famosas: O Mandarim

Esta noveleta meio fantástica, publicada em 1880, foi uma espécie de ruptura com o realismo de O crime do Padre Amaro (1876) e O primo Basílio (1878). 

Sua premissa era uma questão teórica conhecida como “o paradoxo do mandarim”, proposta em 1802 por François de Chateaubriand em O Gênio do Cristianismo

“Se você pudesse, com um simples desejo, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém descobriria, você formularia esse desejo?”

Em O Mandarim, o personagem Teodoro lê num livro a proposta diabólica: 

“No fundo da China existe um mandarim, mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver; e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?" 

Parece haver apenas uma diferença de grau entre a capacidade de castigar verbalmente à revelia um turco remoto, e a capacidade de assassinar à distância um chinês para herdar-lhe os ouros. Nenhum escritor é totalmente inocente dos crimes que imagina.















0309) As flores do semi-árido (17.3.2004)




Quando a gente anda pelo agreste, pelo cariri, por todas essas variantes do semi-árido nordestino, uma das imagens mais tocantes é a da florezinhas que brotam aqui e ali. No meio dos xique-xiques e dos facheiros, por entre aqueles espinhos eriçados, por entre pedras vergastadas pelo sol, surgem arbustos rasteiros. As folhas têm o verde fosco, desbotado, da farda de um soldado que acabou de chegar da guerra; mas por entre essas folhas a ponto de se acinzentar de sede, surgem flores quase sempre minúsculas. Umas são azuis, com petalazinhas arredondadas que parecem boca pedindo beijo; outras são de um amarelo vivo, que rebate alegremente o sol, sem nem um pingo de medo; outras são de um vermelho misterioso e elusivo, do tipo que atrai os olhares enquanto finge prestar atenção noutra coisa.

São as flores do semi-árido, umas coisinhas tão delicadas que parecem não ter brotado ali. Parecem ter sido trazidas por um sujeito brincalhão que resolveu dar um susto nos passantes, pregando nos galhos dos arbustos aquelas florações tão improváveis no meio de tanta aspereza, tanta vegetação crestada pelas brutalidades do tempo.

É dessa florezinhas que eu me lembro quando escuto certas letras de canções populares nordestinas, de certas cirandas praieiras, de certos arrasta-pés matutos. Nunca deixou de me comover a visão daqueles homens de rosto crestado pelo sol, mãos cobertas de calos e cicatrizes, costas encurvadas por décadas de enxada e de sacos nas costas, dançando e cantando: “Triste vida de quem ama, e não é correspondido, a melhor coisa do mundo, é um namoro escondido...” Os refrões falam de “Sabiá da Mata”, e os versos entoam sentimentos amorosos quase infantis. As mulheres a quem esse amor parece ser jurado são rudes, braços musculosos, pés maltratados; têm trinta anos e parecem ter cinquenta, mas erguem os braços no ar como se tivessem onze, e cantam: “Aquela rosa, foi uma jura que eu fiz... aquela rosa, quando eu vinha do jardim... aquela rosa, jurei muito em te querer, eu espero por você e você também por mim...”

Quando eu tinha vinte anos achava isso um contra-senso: pessoas tão rudes deveriam ter sentimentos amorosos beirando a tragédia grega ou as paixões eslavas. Me custou muito tempo para perceber que as letrinhas ingênuas de Jacinto Silva, do Trio Nordestino, de Marinês, não tinham nada a ver com as letras “sem-meu-amor-não-sei-viver” com que a indústria fonográfica carimba sem dó nem piedade nossos ouvidos. Quando Jackson do Pandeiro canta: “A coisa pior da vida é querer bem a mulher... A gente deita na rede maginando por que é... Com tantas no mei do mundo só uma é que a gente quer...”, isso não é imagem retórica, não é jogada radiofônica. É a mesma verdade das rosas mudas de Cartola ou do espinho e da flor de Nelson Cavaquinho. Não existe semi-árido na alma humana onde alguma coisa pequena, delicada e quase impossível não consiga brotar.

0308) Música e brodagem (16.3.2004)




Música moderna, pra mim, é Marcelo D2 mandando um MP3 pra Fred 04. Ela não é somente o conjunto de melodias cantadas e letras ditas, mas toda a estrutura de tecnologias e brodagens que sustentam essa música, e lhe dão significação e sabor. Caso o leitor não conheça o termo “brodagem” (o Dicionário Houaiss, por exemplo, não o registra), basta dizer que vem do inglês “brother”, irmão, e indica o sentimento de irmandade que impregna os grupos, geralmente jovens, envolvidos na criação, produção e circulação dessa música.

É interessante que uma gíria “pop” como brodagem sugira termos de ressonância tão medieval ou renascentista como Fraternidade ou Irmandade. Grupos com estes rótulos postulam ser uma confraria de iguais, onde os cargos hierárquicos servem apenas para simplificar as tarefas administrativas. Fraternidades clássicas como os Rosacruzes ou a Maçonaria se organizaram à margem do poder secular e religioso; eram comunidades alternativas de livre-pensadores que se sentiam incomodados com a centralização e verticalização do poder do Vaticano e dos Imperadores. Eram grupos marginais, independentes, alternativos: todos os adjetivos que usamos hoje para descrever tantos movimentos culturais e artísticos de nossa própria sociedade.

Rico gosta de multiplicar, e pobre gosta de dividir. A brodagem é o recurso dos que têm pouco mas encontram alguém que, também tendo pouco, acha um jeito de distribuir. Uma banda que toca de graça em todas as faixas do CD de um cantor amigo não é muito diferente do grupo de vizinhos que faz um mutirão-de-domingo para “assentar a laje” na casa de Fulano. Favores recíprocos criam laços de camaradagem, de gratidão. Criam um crédito de ajudas que dispensam registro contábil. No espírito da brodagem, um favor não é uma dívida a ser cobrada no futuro: é um gesto de carinho e confiança que será retribuído com prazer na primeira oportunidade.

A brodagem não nasceu agora. O fotógrafo Mário Carneiro disse nos anos 60: “O Cinema Novo brasileiro é acima de tudo um fenômeno de amizade.” Ou seja: um grupo de amigos que queriam fazer as mesmas coisas. Amizade e criatividade alimentavam-se mutuamente, como na Nouvelle Vague francesa, no movimento Underground americano, no atual Dogma escandinavo. É curioso ver tais comportamentos coletivos brotando no interior de atividades como o Cinema e a Música Fonográfica, que são por natureza industriais, hierárquicas, sujeitas a todas as pressões capitalistas para maximização dos lucros, etc. Ser um artista independente num esquema como este é quase impossível. Por que não criar, então, uma Fraternidade de Mentes Autônomas que se ajudam entre si? A brodagem não é um conceito novo. Ainda bem que não o seja, porque isto talvez seja uma pista de que é no fundo a brodagem que tem mantido viva a possibilidade de criação artística ao longo de todos estes milênios.

0307) Ariano e o rock (14.3.2004)




A imprensa paraibana andou batendo nos tapetes ultimamente, depois que Ariano Suassuna declarou que considerava Michael Jackson um débil mental. Ariano anda até se atualizando, porque a última vez que o ouvi proferir esse julgamento o débil mental era Elvis Presley. De uma hora para outra, mobilizou-se todo mundo para discutir uma falsa questão: quem é débil mental, Michael Jackson ou Ariano? É uma questão falsa, porque parte do princípio falso de que, entre dois artistas de posições estéticas inconciliáveis, um dos dois deve necessariamente estar certo e o outro deve ser um pateta.

Caso o leitor desta coluna nunca tenha percebido, sou um grande admirador da pessoa e da obra de Ariano Suassuna, mas Ariano tem lá as idéias dele e tenho eu cá as minhas. Ariano é um agitador cultural como há muito poucos no Brasil, e sabe explorar a vulnerabilidade da imprensa à frase de efeito, à declaração bombástica, ao paradoxo facilmente assimilável. Fiel a sua vocação quixotesca, Ariano investe de caneta em punho logo contra quem? – contra o mega-star do 100 milhões de discos, um moinho-de-vento que não está nem aí para o Brasil, quando mais para um dramaturgo nordestino que fala mal dos rebolados dele.

Não sou um grande fã de Michael Jackson. Era um excelente cantor e dançarino, acabou virando uma caricatura, um cabide de cacoetes. Jackson é menos importante como artista do que como sintoma, como demonstração cruel do que o show-business faz com quem mergulha nele de boca aberta e olhos fechados. Por outro lado, não creio que Ariano critique Jackson depois de ter escutado os discos, visto os clips, pesquisado a obra. Ariano não simpatiza com o show-business americano, como eu também não simpatizo. A diferença é que eu frequento e estudo o rock americano desde pequeno; sou da tribo e conheço os caboclos. Ariano tem outras prioridades. Respeito a opinião dele sobre rock como respeito a de Otto Maria Carpeaux sobre ficção científica (ele a chamava pejorativamente de “literatura de cordel”) e a de Edmund Wilson sobre literatura policial (“um desperdício de papel”). Mas quando eu quero saber o que é joio e o que é trigo no mundo do rock, não pergunto a Ariano: pergunto a Alex Madureira.

O Brasil que Ariano Suassuna visualiza e defende em sua vida-obra nasce do nosso Sertão ibérico, mouro, negro, dos folhetos de cordel, dos cantadores de viola, do circo, dos artistas populares, do messianismo religioso, um Brasil curiosamente próximo de Cervantes, de Rabelais, de Shakespeare. É uma parte essencial do Brasil em que eu, paraibano, acredito; mas não é a totalidade desse Brasil. Ariano diz, citando Machado de Assis, que existem o Brasil real e o Brasil oficial (sendo este último “burlesco e caricato”). O Brasil real, para mim, é maior e mais variado do que o Brasil de Ariano, mas, se tirarem o Brasil de Ariano de dentro dele, ele deixa de existir: vai se desunerar em ilhas de mero cosmopolitismo, de mera contemporaneidade.


0306) Segredos do Pai Mateus (13.3.2004)

(Foto: Gustavo Moura)

O lajedo do Pai Mateus fica no município de Cabaceiras, a duas horas e meia de carro de João Pessoa, e a uma hora de Campina Grande. Não precisa ser um Indiana Jones para chegar até lá. A fazenda onde o sítio arqueológico está situado (http://www.paimateus.com.br/) tem uma pousada com piscina, restaurante, e uns 20 chalés quase sempre ocupados por turistas que vêm em excursões via João Pessoa e Natal. Por algum motivo, grande parte dos turistas são escandinavos: geólogos, fotógrafos, budistas em busca de recolhimento, rapaziada que pratica bicicross, rappel, trekking e outros esportes radicais. A região serviu de locação para filmes como O Auto da Compadecida de Guel Arraes e São Jerônimo de Júlio Bressane.

Faço este “release” turístico para deixar claro que se um sujeito anêmico, sedentário e fotofóbico como eu conseguiu escalar os lajedos e percorrer aquelas trilhas, qualquer um de vocês consegue. A paisagem é impressionante. Eu tenho umas excentricidades na minha relação com a natureza. Todo mundo, quando fala em natureza, pensa logo em bichos e plantas. Eu, não. Quando me falam em natureza a primeira coisa que me vem à cabeça são montanhas e rochedos. O apartamento onde hoje moro, no Rio, abre janelas para um rochedo imenso do qual, em dias de temporal, descem cachoeiras de chuva espumante. Não troco isso por dez oceanos atlânticos.

O Pai Mateus fica naquela região pedregosa e bruta do Cariri paraibano, fonte inesgotável de riquezas minerais (caminhões da Bentonita União não param de ir e vir). À medida que nos aproximamos, vemos a rocha subterrânea aflorando por todos os lados, o que me lembra uma descrição de Stephen King: “a camada rochosa rompia a pele da terra, como uma procissão soturna e corroída pela erosão”. O lajedo propriamente dito é como um imenso pires emborcado, em cujo topo equilibram-se improváveis esferas de pedra, com 3 a 5 metros de altura. Algumas delas estão corroídas por dentro, e lembram capacetes de motoqueiro. Mesmo “quando o sol calcina a terra”, no interior dessas minicavernas a temperatura é fresca, há um curioso efeito de som que parece uma concha acústica, e a face interna é coberta de inscrições feitas pelos índios.

O Pai Mateus foi um eremita que no século 18 era uma espécie de curandeiro junto às tribos locais. Na loca mais larga de todas, ainda se vê a cama que ele usava em suas curas, um retângulo de pedra que, para ser equilibrado sobre duas fileiras de pedras menores, deve ter exigido o esforço de pelo menos uns doze homens fortes. Dali se avista um por-do-sol que evoca o verso de Marcus Accioly, “um céu de dragões entre espadas vermelhas”, com o sol pousando ao lado da única montanha que brota do horizonte, a qual tem a forma exata do Teorema de Pitágoras. Não, amigos, não creio em deuses astronautas. Só imaginamos deuses, e só criamos astronautas, porque o mundo é do jeito que é: imprevisível, misterioso e belo.

0305) O ananás de ferro (12.3.2004)




Quando eu era pequeno passava as férias em Recife, na casa de minha avó paterna, Vó Clotilde, uma velhinha muito esperta, parecida com Agatha Christie. Tão parecida que foi ela mesma quem me aplicou a obra da Dama do Crime. Aos 10 anos li O caso dos 10 negrinhos, para descontentamento de minha mãe quando descobriu que Vó tinha me dado um livro tão maquiavélico. Bobagem: pouco depois ela própria estava com a cara enfiada no livro, e achando o máximo. Todas as minhas leituras dessa época foram edificantes, mas poucas o terão sido tanto quanto um conto desconhecido de um autor obscuro, numa antologia chamada “Os Mais Belos Contos Alucinantes” (que garoto resiste a um título assim?)

O conto era “O ananás de ferro” de Eden Philpotts, e tenho uma teoria pessoal de que foi ele quem inspirou a Jorge Luís Borges a obra-prima “O Zahir”, a história do objeto inesquecível, o objeto que ocupa a mente de alguém e não pode mais ser desalojado dali. Borges certamente leu este conto, pois em seus ensaios elogia o romance mais famoso de Philpotts (The Red Redmaynes, de 1922), e publicou conto seu na antologia Los Mejores Cuentos Policiales (2a. série, 1951). Naquele conto, o protagonista é um sujeito meio obsessivo, que se deixa facilmente dominar por idéias fixas. Um dia ele avista, na cerca de ferro de uma propriedade próxima, uma fileira de ananases de ferro que servem de adorno. E ele fica obcecado por um deles. São vários, e todos iguais; mas o que o fascina é o terceiro do lado norte do gradil. Por que? Ele não sabe. Só sabe que aquele objeto insignificante tornou-se a coisa mais importante de sua vida.

Diz ele: “Pensava nele como um ser sensível; considerava-o uma criatura que podia sentir, sofrer e compreender. Nas noites úmidas imaginava que o ananás de ferro devia sentir frio; nos dias de calor receava que ele estivesse sofrendo com o sol de verão! Da comodidade e conforto de minha cama, imaginava-o acorrentado ao seu pedestal solitário no meio da escuridão. Quando caía uma trovoada, tinha medo que um raio atingisse o ananás de ferro e o destruísse para sempre.”

O conto tem um desfecho banal (um crime é cometido), mas o seu valor está em registrar esta curiosa emoção humana chamada paixão. Quando nos apaixonamos por outra pessoa, justificamos esta paixão com uma porção de explicações lógicas (identificação de espíritos, atração sexual, admiração recíproca, auto-estima social, etc.), como se tudo isto fosse a “causa” da paixão. Quando nos apaixonamos por um ananás de ferro é que percebemos, sem o adorno dessas racionalizações “a posteriori”, o quanto a paixão não tem causas racionais. É absurda e ao mesmo tempo revestida de uma lógica inflexível; gratuita, e ao mesmo tempo auto-justificada. Nossa alma está inexplicavelmente acorrentada àquele ser onipresente. Não o entendemos e não o esperávamos, mas esse obscuro objeto de desejo transformou-se na coisa mais importante de nossa vida.

0304) O peso das palavras (11.3.2004)


(Desenho de Saul Steinberg)

Einstein dizia que suas descobertas sobre Física se baseavam em intuições visuais e musculares. Ele visualizava cenas e intuía movimentos, extrapolava isto para o Universo, e tentava descrever em termos científicos essas intuições. Mozart dizia que certas composições, mesmo as peças orquestrais mais complexas, lhe surgiam instantaneamente, como se fosse uma enorme mandala simétrica. Ele visualizava o todo e percebia instintivamente como teria que ser cada parte, como cada detalhe teria que ser desenvolvido para compor aquele enorme conjunto. Como tudo era simétrico, bastava perceber um aspecto para, projetando-o no conjunto, resolver de uma vez só centenas de pequenos detalhes técnicos.

Todo mundo que se dedica a uma atividade criativa desenvolve uma relação desse tipo com o material que usa. Não são somente os gênios, mas todo camarada que se senta num batente de porta para talhar madeira com um canivete, ou que ao preparar um verso sabe, sem saber como, que tal rima o levará a um beco-sem-saída e que tal outra lhe abre possibilidades de expandir o poema na direção certa. Todo trabalho artístico contém um certo grau de sinestesia, aquela faculdade que nos faz misturar os sentidos e falar numa “cor salgada”, numa “voz escura”, num “texto espinhoso”, numa “adjetivação estridente”.

Quando escrevo, tenho a sensação de que a “linha” do texto não se parece com uma linha de costura ou de pesca, que são flexíveis. Ela parece com um arame horizontal, daqueles arames onde minha mãe estendia roupa, uma linha que se sustenta a si mesma no espaço, e que é capaz de sustentar o peso de coisas que são colocadas sobre ela. A cada palavra que a gente soma à linha (e isso é mais intenso na poesia do que na prosa) é como se fôssemos prendendo pecinhas horizontais de Lego umas às outras. No Lego de verdade, chega-se a um ponto em que o peso das peças é maior do que a justeza do encaixe, e a arrumação toda desmorona. No texto, ao contrário, é possível encaixar assim centenas de palavras. Por mais peso individual que uma delas tenha, isso não faz a linha vir a baixo; mas se a gente colocar uma palavra fraca, aí sim, é como se ela desconjuntasse o conjunto, e o texto se espalhasse em cacos pelo chão. O que me lembra a frase clássica de Conan Doyle: “Nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos”.

Outra sensação que tenho quando escrevo é que algumas partes do texto se destacam, como se estivessem em negrito. A maioria das palavras são meio esmaecidas, mas outras, as que têm interesse literário, parecem ser mais encorpadas, espessas, densas, maciças, e isso de certa forma faz com que elas se projetem para fora do texto como as palavras em negrito parecem se projetar. Numa revisão, são estas as palavras inegociáveis, as que não podem ser modificadas. As outras estão ali como argamassa, passagem, conexão, mas o texto, mesmo, são aquelas que o olho instintivamente procura e reconhece.

0303) O deus das coisas certas (10.3.2004)



(Hermes, de Giovanni da Bologna, 1580)

Minha fama é de ser ateu e cético, mas na verdade a definição que mais se aplica a mim é “politeísta neo-tecnológico”. Tenho uma certa dificuldade em acreditar na existência de um Deus único, onipotente, onisciente e sempiterno; de um Super-Ser que concebeu e conduz cada átomo deste Universo espantosamente grande, e ainda tem tempo de se preocupar com questões morais como se o guarda de trânsito recebe propinas ou se a filha da vizinha está pulando a cerca. Mas, se alguém me dissesse que existe um Deus para cuidar somente da energia elétrica, outro para a proliferação da matéria orgânica, outro para coordenar as formações geológicas do planeta, e assim por diante... eu acharia isso bem mais lógico.

Os antigos acreditavam que para cada movimento na Natureza correspondia um Deus. O nome ou as características físicas do Deus não importam muito, mas quando analisamos suas atribuições podemos entender um pouco sobre ele. Veja-se por exemplo o caso do deus grego Hermes (Mercúrio, entre os romanos). Ele é considerado (estou consultando a “Encyclopedia Mythica”, em http://www.pantheon.org/) “o deus dos pastores, das viagens terrestres, dos mercadores, dos pesos e medidas, da oratória, da literatura, dos atletas e dos ladrões, e é conhecido por sua esperteza e astúcia. Sua função mais importante é ser o mensageiro dos deuses.”

Parece um samba-do-crioulo-doido, mas se abstrairmos o que há em comum entre estas funções, veremos que Hermes é o deus da troca de informações. As “viagens terrestres” e a profissão dos “mercadores” servem justamente para isto: para pegar o que existe em A e transportar para B, e assim por diante. Os “pesos e medidas” têm uma função semelhante: eles servem para unificar conceitos e facilitar a troca, ou seja, para que as mercadorias possam fluir com maior rapidez e facilidade. A “oratória” e a “literatura” fazem o mesmo com as informações propriamente ditas e com as idéias: colocam-nas em circulação, pegam o que existe na mente de A e transportam para a mente de B. E macacos-me-mordam se os “ladrões” também não cumprirem uma função parecida, porque não há dúvida de que cabe a eles, em qualquer sociedade, mesmo no Brasil de hoje, um importante papel no transporte de informações, valores e mercadorias. Basta lembrar a pirataria de CDs e o tráfico de drogas. Não questiono, neste caso, se as mercadorias são boas ou más do ponto de vista moral: Hermes é apenas o deus da circulação, da veiculação, do fluxo.

Imagino que as outras atividades de que Hermes é padroeiro (pastores, atletas) têm mais a ver com sua função sociológica na sociedade grega, mais do que com seu significado simbólico. (Boa tática esta, para justificar as exceções que não se encaixam!) Em essência, ele é o Deus do comércio, da literatura, das viagens: de tudo que faz circular a energia do universo, a mais importante mensagem dos deuses para todos nós.

0302) Retrato do artista quando chove (9.3.2004)




Eu não tenho nada contra o sol, mas me sinto muito mais à vontade na companhia da chuva. Estou falando bem baixinho para que não me escutem no Rio de Janeiro, onde moro, e em João Pessoa, onde este jornal também circula.

Que isto fique somente entre nós, campinenses, que aprendemos desde a infância a arte sutil de saborear a textura diáfana de uma neblina, e que não nos sentimos de maneira alguma prejudicados quando a tarde se acinzenta, as nuvens se avolumam, e o céu cai por cima de nós com toda força.

Tenho pensado muito nisto agora, com essas chuvas que andam desabando pelo Nordeste, derruindo pontes, invadindo casas, expulsando populações inteiras. Muita gente aqui no Rio fica perplexa, porque os telejornais ficam mostrando imagens alternadas de catástrofes e de comemorações; adultos em lágrimas com os troços na cabeça e pirralhos felizes tibungando na barragem. A mente cartesiana dos civilizados trava um pouco diante disto.

É difícil explicar que num lugar apocalíptico como o velho Nordeste tudo está sempre a uma vírgula de uma catástrofe qualquer. Chover é problema, mas não chover também é problema, e já que tudo é problema nós apenas vivemos num nível mais problemático de normalidade – e é só tocar o barco como sempre se fêz.

O bom da chuva, reconheço, é quando se mora numa casa segura, num apartamento ao abrigo das enchentes e de outros incômodos. (Calma, amigos, sou solidário com as populações ribeirinhas e periféricas, mas tenho meus momentos poéticos!) A chuva que sangra açudes, desmorona barragens, engrossa rios e alaga bairros é uma chuva prosaica, uma chuva desencadeadora de meros fatos. Eu gosto mesmo é da chuva que se escuta lá fora, de preferência à noite.

Primeiro é um barulho ciciante que parece vir de todas as direções, cada vez mais alto; então escutamos o tamborilar das primeiras gotas no vidro da janela, e logo é um verdadeiro jorro de água que fustiga o vidro. Pelo meio-fio desce a enxurrada marrom onde passam velozmente galhos, sacos plásticos, latas amassadas.

A chuva lava o mundo lá fora, e o ruído da chuva parece que lava a gente aqui por dentro, como uma ducha fria em tarde quente, arrastando até o último grão de poeira em nossos cabelos e em nossa pele.

A chuva lembra à gente que o mundo está vivo. Numa hora qualquer de sol ou de noite aberta, a gente até pensa que está num lugar morto, numa espécie de Marte que ainda não virou deserto mas onde a Natureza não existe mais. Durante um temporal, contudo, não há como não perceber que aquilo é uma espécie de voz dizendo alguma coisa.

Quando chove estamos escutando, como diria Stanislaw Lem, “uma sinfonia que cria a si mesma”, a música que o mundo tocava para si mesmo antes de ser habitado por criaturas que produzem sons com instrumentos inventados. A chuva nos diz algo que só entendemos aqui, no escuro, à luz dos relâmpagos e ao som dos trovões, no calor aconchegante de quem retornou a águas antigas.






0301) Polêmicas (7.3.2004)


(Spy vs. Spy, de Alex Prohias)

Eita, que a Paraíba velha de guerra anda pipocando de polêmicas! Nem quero me meter muito, porque nessas horas sempre sobra uma bala para os bem-intencionados. Uma polêmica cultural é uma coisa bem vinda, é sinal de vitalidade, de que as pessoas se motivam a discutir idéias, a comparar opiniões. De repente alguém diz alguma coisa que bota todo mundo em polvorosa, uns contra, outros a favor; uns ficam jogando lenha na fogueira e outros água fria na fervura, e no final, se tudo corre bem, discutiu-se uma porção de coisas que de outra forma talvez tivessem resvalado para o anonimato das coisas esquecidas.

Polêmica literária parece muito com briga de casal, onde se começa a discutir porque a conta da luz veio muito alta e daí a dez minutos está se passando a limpo um ciúme mal resolvido de cinco anos atrás. Eu atribuo isso ao fato de que, grosso modo, existem dois tipos de pessoas: os que se animam a discutir assuntos porque se interessam pelas idéias envolvidas, e os que o fazem porque esse assunto lhes desperta emoções intensas. Chamemo-los de os Racionais e os Emotivos. Os Racionais, em geral, conseguem se distanciar do que discutem: analisam, examinam, distinguem diferenças, apontam falhas no raciocínio do interlocutor, procuram o tempo todo manter a coisa no plano teórico. Os Emotivos jogam-se de peito aberto no campo de batalha, dão preferência às frases de efeito e aos epítetos sarcásticos. Fazem generalizações abruptas e afirmações bombásticas, em rápida sucessão, para não dar tempo a que alguém lhes peça comprovantes.

Lendo a descrição acima, caro leitor, deve ficar bem claro a qual dos grupos eu julgo pertencer, não é mesmo? Sossegue, porque todos nós pertencemos a ambos, de acordo com o envolvimento que temos com o assunto. Para mim é facílimo ser racional ao discutir “Os Lusíadas”, mas se a conversa derivar para a ficção científica brasileira, assunto que me toca bem mais de perto, corro o risco de daí a pouco estar discutindo, nelson-rodriguianamente, com “o olho rútilo e o lábio trêmulo”.

Toda polêmica seria uma coisa boa se conseguisse estabelecer uma verdade consensual, mesmo provisória; um equilíbrio de opiniões que pudessem, mesmo que temporariamente, ser encampadas e avalizadas por todos os envolvidos. Os políticos (essa classe tão vilipendiada por nós, arcanjos incorruptíveis da torre-de-marfim da Grande Arte) são mestres nisso, nessa arte zen de encontrar o ponto de equilíbrio ideal entre vontades antagônicas e interesses conflitantes. Polêmicas literárias muitas vezes só resultam em escoriações generalizadas no Ego e hematomas no amor próprio dos participantes. Polêmicas deveriam alcançar (eita, como é bom teorizar no abstrato!!), se não um consenso, pelo menos uma nitidez maior nos termos do debate, uma visibilidade maior dos polos de contradição envolvidos. Quando uma polêmica acaba, devemos pelo menos saber quem estava defendendo o quê, e por quê. Do jeito que anda o mundo, é lucro.