sábado, 15 de março de 2008

0260) O império da Pedra do Reino (20.1.2004)




(Foto: Cavalgada da Pedra do Reino, em Belmonte)

A ficção científica popularizou o conceito da “falsa realidade”: a história onde alguém descobre que a vida real que vinha vivendo não passa de uma simulação. 

O exemplo mais conhecido é O Show de Truman, onde todo mundo, menos o ator principal, sabe que aquilo é um sitcom de TV. Os livros de Philip K. Dick exploram essa idéia desde os anos 1970; filmes recentes como O 13º andar, Cidade das Sombras e Matrix têm explorado a mesma premissa.

O velho samba de carnaval perguntava: “Que rei sou eu, sem reinado nem coroa?”. 

Um artigo de Alex Blumberg publicado este ano na revista Wired (http://www.wired.com/wired/archive/8.03/kingdoms_pr.html) examina o conceito de micronações. São pequenos grupos de pessoas que proclamam a existência de uma nação, e apossam-se simbolicamente de um pedaço de território, em sua cidade natal ou nalgum lugar remoto. Elegem governos, proclamam leis, criam sua própria heráldica e seu código de costumes. 

O que as distingue, diz o articulista, é um detalhe: há grupos que pretendem de fato criar um país e obter reconhecimento da comunidade internacional; e há outros que ficam satisfeitos só em fingir uma falsa realidade.

Entre estas micronações fictícias, há algumas curiosas, como Talossa, Freedonia, Triparia. A maior parte delas não passa de um papel-carbono das ficções histórico-geográficas adotada nos “Role Playing Games”, onde se criam verdadeiras enciclopédias de fatos fictícios. Países imaginários é o que mais tem nesse universo de jogos (eletrônicos ou não, interativos ou não). 

Acho que não vai demorar muito para algum sujeito esperto fazer a fusão jurídico-administrativa entre uma micronação e um “game”. A micronação não precisará mais de um território terrestre, por assim dizer. Será uma ciber-nação, como existe hoje no universo de jogos como “Ultima Online”; mas poderá conseguir reconhecimento internacional e cadeira na ONU. 

Se surgir apenas uma, será uma excentricidade isolada. Mas suponhamos que apareça meia-dúzia, depois uma dúzia, depois vinte, cinquenta? Esses países virtuais só existirão no interior da teia eletrônica; um mundo imaginário, paralelo ao nosso.

Os habitantes de São José do Belmonte (PE) sentiram-se entusiasmados com a grandeza épica que o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna projetou nas duas famosas pedras que se erguem naquele município como torres gêmeas, nas quais um macabro ritual de fanatismo matou barbaramente um grande número de vítimas indefesas. 

E hoje realiza-se todo ano a Cavalgada da Pedra do Reino, com a presença do Imperador Ariano. A literatura faz a fusão perfeita entre realidade e jogo; principalmente a literatura solta, desbragada, hiperbólica, que tira sua inspiração das narrativas populares. 

Daqui a quantos anos teremos o Reino Imaginário de D. Pedro Dinis Quaderna existindo entre nós, uma comunidade virtual de arianistas cibernéticos, uma micronação armorial online?






0259) Canudos, Lepanto, Cartago, Waterloo (18.1.2004)




Quem acompanha a série de filmes O Senhor dos Anéis deve lembrar-se das suas memoráveis cenas de batalha, especialmente no segundo e no terceiro filmes. O que parecem ser dezenas de milhares de extras fantasiados de orcs é na verdade uma criação de computador. Com exceção dos atores e figurantes que combatem de verdade diante das câmaras, todo aquele tapete de guerreiros armados até os dentes, que parece se estender até o horizonte, é gerado por computação gráfica. Para maior realismo, os programas fazem cada um desses “figurantes gráficos” se comportar de maneira ligeiramente diversa dos demais, para que tudo não fique parecendo um balé ensaiado ou uma coreografia de loops repetitivos.

Acontece que os programas vão se sofisticando. Há videogames onde é possível determinar no computador o que cada soldado daqueles vai fazer. Ele está sendo “pilotado” por um programa capaz de observar o cenário, deslocar-se no terreno, registrar e avaliar os movimentos dos outros figurantes, trocar golpes com o inimigo. Um técnico envolvido nesse processo queixou-se certa vez de que o grande problema era que os “figurantes virtuais” muitas vezes batiam em retirada, fugiam do campo de batalha. Quando o programa percebia que matematicamente suas chances eram poucas, eles passavam sebo nas canelas, corriam com a sela, davam às de vila-diogo. O técnico se queixava: “Não podíamos tornar os computadores burros o bastante para serem obrigados a lutar.”

Rapaz, isso na mão de um filósofo pode ficar muito engraçado. Veja o Oriente Médio. Conseguimos obrigar seres humanos jovens, instruídos, racionais, a vestir uma farda para ir matar gente num cu-do-judas qualquer. Ao mesmo tempo, uma mera simulação de computador consegue mandar a batalha às favas e cair fora. E ainda falam em que não há determinismo, e que o ser humano tem livre arbítrio. A julgar por esse pessoal que vai pra guerra, o livre arbítrio do ser humano é equivalente ao de uma baleia amestrada, como a Free Willy.

A liberdade é menor na vida real, mas vai se tornando mais alcançável no mundo dos jogos cibernéticos. Os superespetáculos, daqui a (quantos?) anos, serão uma mistura do cinema tela-grande com som Dolby estéreo, que temos hoje, com os jogos online como Última ou Counter Strike. Assim como neles, os espetáculos futuros juntarão milhares de personagens, que povoarão uma cidade ou entrarão em combate: e cada um deles é “pilotado” por um cara diante de um computador (ou com um PC no pulso) em qualquer parte do mundo. Filmes prontos, “obras fechadas”, virarão uma raridade cult. O público vai querer interatividade e competitividade. Irá se ampliando o espaço para os filmes improvisados por milhares de players. Em seus episódios mais dramáticos, eles serão transmitidos pela TV, ou reproduzidos em salões com imensas telas digitais diante de uma platéia onde se misturam jogadores e meros espectadores. Seremos Frodo, alguém será Sauron.

0258) Da Terra Média ao Sertão (17.1.2004)




(ilustrações: Poty / J. R. R. Tolkien)

A trilogia O Senhor dos Anéis foi trazida para o cinema por Peter Jackson com a fidelidade possível quando se trata se adaptar um livro tão imenso – na edição de bolso que possuo, ele ultrapassa as 1.500 páginas.

A comunidade internacional de fãs de J. R. R. Tolkien teve um papel importante nisto, pressionando diretor, roteiristas e produtores, e impedindo as catástrofes dramatúrgicas típicas das adaptações dos clássicos feitas em Hollywood. Assim, grande parte da substância do livro acabou tendo um equivalente aceitável na tela.

Tolkien era um sujeito introvertido, ascético. Teve uma terrível experiência nas trincheiras durante a I Guerra Mundial, quando perdeu vários amigos. O Senhor dos Anéis foi escrito entre 1936 e 1949, durante a II Guerra, portanto.

É comovente (e educativo) nos dias de hoje, ver Tolkien afirmar que o manuscrito inteiro foi duas vezes datilografado por ele próprio, porque mesmo sendo professor em Oxford não podia pagar um datilógrafo.

Era um conservador, apaixonado pela Idade Média, sobre a qual falava aos seus alunos com entusiasmo; conta-se que costumava encerrar essas descrições dizendo: “E aí veio a Renascença, e estragou tudo.”

Era profundamente católico, misoginista como muitos britânicos de sua geração, detestava a tecnologia e a modernização.

O “Condado” (Shire) onde vivem os hobbits é sua utopia pessoal, uma visão idealizada de uma Inglaterra rural, pacífica mas resoluta, amante do sossego e dos livros, mas capaz de ganhar uma guerra se ameaçada de invasão.

O Senhor dos Anéis, apesar de ser aquele catatau, é apenas a ponta do iceberg ficcional de Tolkien, que imaginou uma história-do-mundo completa, desenhou mapas, criou genealogias, idiomas e alfabetos.

Tolkien fundou o que podemos chamar de “ficção catalográfica”, onde o autor inventa todos os detalhes de um mundo. Ele inventou primeiro o idioma dos elfos, e ao imaginar sua História começou a inventar as narrativas que hoje conhecemos. Neste aspecto, sua obra tem uma coerência e um mapeamento interno muito maior que a obra de Guimarães Rosa.

Rosa era meticuloso ao pesquisar, e totalmente intuitivo e instintivo ao escrever. Seus arquivos guardam uma quantidade impressionante de material, mas ele não lhes deu a coerência catalográfica que existe na obra de Tolkien.

Extrovertido, vaidoso, bem-humorado, cosmopolita, Guimarães Rosa era em muitos aspectos o avesso de Tolkien.

Seus heróis (Riobaldo, Diadorim, Augusto Matraga) são tomados muitas vezes por uma alegre ferocidade, uma euforia-de-batalha que está ausente nos heróis dos “Anéis”.

Por outro lado, o romance de Tolkien é otimista (dos nove membros da Irmandade do Anel, apenas Boromir morre), enquanto que o Grande Sertão é no fundo a história de um fracasso, ou de uma vitória de Pirro: no final, Riobaldo é feliz no jogo (na guerra) e infeliz no amor.

Tolkien era um homem triste que sonhava com finais felizes, e Rosa um homem alegre que temia o Final.



0257) Frodo e Riobaldo (16.1.2004)





(Elijah Wood como Frodo)

Na coluna de ontem, comparei o perfil do Riobaldo de Grande Sertão: Veredas com o de Aragorn em O Senhor dos Anéis. Chamo isto de “recorrência arquetípica”. Todo autor, ao recriar um tipo clássico de personagem (no caso, o Guerreiro Heróico) dá-lhe (mesmo sem perceber) traços que pertencem a uma tradição literária. 

Aragorn e Riobaldo são grandes guerreiros, merecedores do posto mais alto do Poder, mas cheios de dúvidas e de hesitações. A literatura está cheia de riobaldos, mas nenhum como o de Rosa, e de aragorns, mas nenhum como o de Tolkien.

Há outro herói no Senhor dos Anéis, contudo, que tem muitos traços em comum com Riobaldo: é Frodo Baggins (na tradução brasileira, “Frodo Bolseiro”). 

Se Aragorn é o Herói Guerreiro a quem cabe derrotar os exércitos do Mal e unificar sob um poder central os clãs rivais, Frodo é, como Riobaldo, o sujeito pacífico sem vocação para herói mas que, é jogado pela circunstâncias no meio de uma batalha, e vira guerreiro a contragosto. 

É, assim como Riobaldo, um herói problemático, pouco à vontade com este papel (Riobaldo: “Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens”). E, como Riobaldo, é também um herói atormentado pela presença do Diabo.

Riobaldo, embora se torne grande guerreiro, foi criado para uma vida pacífica, e entrou na jagunçagem por acaso. Muito apegado aos livros, é contratado para ser professor e secretário de Zé Bebelo, o capitão das tropas que perseguiam os jagunços. Ao ver o primeiro combate de verdade, desgosta-se daquilo e abandona o patrão. 

Uma série de acasos o faz entrar em contato com o bando de jagunços de Joca Ramiro, entre os quais reconhece o “Reinaldo”, ou Diadorim, um menino que conhecera anos antes. E é por essa amizade, depois transformada em amor, que Riobaldo se junta ao grupo, e de intelectual vira guerreiro.

Riobaldo vai à encruzilhada das Veredas Mortas para fazer um pacto com o Diabo. O Diabo não aparece, mas o jagunço volta de lá transformado, mais seguro, mais ambicioso, e pela primeira vez disposto a tornar-se líder do bando. 

Nos “Anéis”, Frodo, tendo colocado o Anel, entra em contato direto com Sauron, o Senhor das Trevas, fica daí em diante sob a mira deste, e acaba oferecendo-se a contragosto para destruir o Anel e fazer desmoronar o império do Mal. 

Tanto Frodo quanto Riobaldo são heróis contaminados por esse contato com o Mal. Frodo diz, após o fim da aventura: “Estou ferido, Sam, ferido, e nunca vou me curar.” Riobaldo, na encruzilhada: “Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.” Cada frase poderia ter sido dita pelo outro.

Note-se também que ambos exorcizam o Mal virando “escritores”: Riobaldo constrói oralmente sua epopéia, ditando-a a um interlocutor invisível (implicitamente o próprio Guimarães Rosa); Frodo é o cronista que passa para o papel a Guerra dos Anéis, finalizando o manuscrito iniciado por Bilbo.






0256) Aragorn e Riobaldo (15.1.2004)




(Viggo Mortensen, como Aragorn)

Já me referi nesta coluna aos pontos em comum entre a obra de Tolkien e o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. 

Em ambos se descreve uma batalha épica do Bem contra o Mal, onde as tropas do Bem são conduzidas por um herói problemático, cheio de dúvidas e hesitações. 

O herói do Grande Sertão é Riobaldo, um jagunço a quem cabe liderar o bando na jornada de vingança ao seu líder, Joca Ramiro, assassinado à traição por um dos seus sub-chefes, Hermógenes. 

Joca Ramiro tem a estatura épica e o caráter íntegro de um rei medieval (Riobaldo o chama de “par-de-França”). Com sua morte, os jagunços ficam divididos em bandos menores, cada qual comandado por um sub-chefe: Medeiro Vaz, João Goanhá, Titão Passos, Sô Candelário, etc.

Riobaldo é o melhor atirador do grupo, o jagunço mais frio no gatilho, o de melhor pontaria, talento que o torna respeitado e lhe vale apelidos honrosos: “Tatarana”, “Urutu-Branco”. Ele junta-se por fim ao grupo de Medeiro Vaz que, à morte, oferece-lhe a chefia. Ele recusa. 

É um típico herói-em-dúvida, herói moderno, diferente dos heróis mitológicos que em nenhum momento questionam a própria coragem, as próprias motivações. Riobaldo pergunta-se: “Por que estou fazendo isto tudo? Por que fazer isto? E por que logo eu?” 

Crivado de dúvidas, ele recorre ao pacto com o Diabo, na encruzilhada das Veredas Mortas, para a qual vai descrente, e de onde retorna sem ter certeza se encontrou mesmo o Diabo ou não. 

Mas a partir desse episódio ele parece mudado, imbuído de uma autoridade que não parecera ter até então. Sob seu comando os bandos dispersos de jagunços são unificados, e encurralam os “hermógenes” ou os “judas”, como chamam aos inimigos, até derrotá-los na batalha final do Paredão.

Em O Senhor dos Anéis, Aragorn é o legítimo herdeiro do trono, por ser filho de Isildur, o rei que decepou a mão de Sauron, o Senhor das Trevas, tomando dele o Anel do Poder. 

Aragorn, órfão, é criado pelos elfos, que somente na idade adulta vêm a saber de sua linhagem. Ele torna-se um “Ranger”, patrulha as fronteiras da Terra Média, e adquire não só experiência de batalhas e de privações como passa a conhecer profundamente o território e o povo. Ele poderia repetir a frase de Riobaldo: “Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eu não tenha aparecido.” 

Sabe que é destinado a ser rei, e que para isso terá que unificar os diferentes reinos que se opõem a Sauron (Gondor, Rohan, etc.). Mas sabe também que seu pai, Isildur, cedeu à tentação do Anel e em vez de destruí-lo ficou com ele. 

Como Riobaldo, ele não questiona a própria bravura ou sua competência como guerreiro, mas, até ser arrastado pelos acontecimentos, hesita diante da missão que lhe cabe. Ambos pertencem a uma estirpe de heróis (como o Paul Atreides de Duna) que enfrentam a Morte sem medo, mas que hesitam diante do Poder, por saberem que nenhum Poder é conquistado com mãos limpas, por melhores que sejam as intenções do Herói.






0255) Tolkien e Guimarães Rosa (14.1.2004)




Uma vez, conversando com amigos estrangeiros, perguntaram-me quem era o maior escritor brasileiro; respondi que era Guimarães Rosa. Ninguém tinha ouvido falar nele; quiseram saber que tipo de escritor era. Eu disse: “Imagine os romances de J. R. R. Tolkien escritos por James Joyce.” 

Riram porque pensaram que era piada, mas não era, era um mero exagero. A crítica literária brasileira, especialmente a que sofreu influência do Concretismo paulistano, sempre compara Rosa com Joyce; nunca vi ninguém compará-lo com Tolkien. E no entanto a obra dos dois tem imensas semelhanças, que me voltam à mente ao assistir o terceiro episódio da magnífica trilogia O Senhor dos Anéis de Peter Jackson.

Tanto Rosa quanto Tolkien imaginaram uma região mítica, fundada em suas vivências pessoais e em suas fantasias metafísicas. 

O Sertão de Rosa é, para usar uma linguagem meio pedante, semanticamente realista (porque tudo ali é observado, é anotado em caderneta, é pesquisado junto aos mais-velhos: usos, costumes, lugares, plantas, bichos) mas sintaticamente mágico, porque os acontecimentos e os destinos dos personagens parecem orquestrados por potestades invisíveis. 

Esse sertão que na superfície é tão mineiro, tão geográfico, tem uma escala épica que o transforma no campo de batalha entre as forças de Deus e as do Diabo.

Quanto a Tolkien, criou a Terra Média (Middle Earth), supostamente uma era remota no passado do nosso planeta, povoada por reis, guerreiros, e raças fantásticas (elfos, anões, orcs, trolls, etc.), que foram varridas da Terra depois que o Homem tornou-se o seu dono. 

À primeira vista, o mundo de Tolkien é totalmente fantástico, mas basta ler uma biografia sua (especialmente a de Humphrey Carpenter) para ver como seu processo criativo era realista. 

Tolkien compunha para seus reis árvores genealógicas inteiras, que se estendiam por milênios. Os elfos têm uma linguagem completa, toda inventada por ele (e falada pelos atores em trechos dos filmes). Seu cuidado ao descrever as aventuras de Frodo o fazia calcular desde a fase da lua em determinada noite até quanto tempo alguém levaria para ir a pé ou a cavalo de um lugar para outro (aspecto em que autores de romances não-fantásticos, como Walter Scott, muitas vezes se fazem de doidos).

Apesar das evidentes diferenças entre Grande Sertão: Veredas e O Senhor dos Anéis, ambos têm um sopro épico semelhante, ambos são a epopéia de um grupo pequeno de guerreiros do Bem enfrentando um grupo impiedoso de guerreiros do Mal. 

Os “orcs” da Terra Média e os “hermógenes” que Riobaldo enfrenta nas batalhas sertanejas são personificações do Mal que um herói hesitante e problemático precisa derrotar. 

Há muitos paralelos de detalhes que podem ser traçados entre as duas obras, mas mais importante do que isto é o espírito de nobre maniqueísmo medieval que os dois autores compartilhavam. O Bem existe. O Mal também. E é preciso pegar em armas para combater o Mal.






0254) O hiper-soneto de Queneau (13.1.2004)




Raymond Queneau é um dos personagens mais divertidos, mais misteriosos e mais fascinantes da literatura francesa. Fêz de tudo um pouco. Foi matemático amador, e também propôs uma nova ortografia para a língua francesa. Foi coordenador da respeitável Encyclopédie de la Pléiade, e era leitor inveterado de romances policiais e de ficção científica. Escreveu um poema épico-científico sobre a criação do mundo (Petite Cosmogonie Portative) e foi letrista da canção francesa de maior sucesso nos anos 1950, “Si tu t´imagines” (gravada por Juliette Gréco). Seu livros mais conhecidos, ambos traduzidos no Brasil, são Zazie no metrô, aventuras de uma garota do interior através de Paris, e Exercícios de estilo, uma pequena anedota recontada de 99 modos diferentes, que o diretor Gabriel Vilela adaptou para o teatro com o título Você vai ver o que você vai ver.

Quem quiser saber mais sobre Queneau pode começar pela página de minha autoria no saite The Modern Word (http://www.themodernword.com/scriptorium/queneau.html). O que nos interessa, no momento, é o poema experimental que ele intitulou “Cem mil bilhões de poemas”. Na verdade, trata-se de um poema combinatório: são dez sonetos (em formato tradicional, com esquema de rimas ABAB-ABAB-CCD-EED), escritos de tal forma que o final de cada primeira linha pode se encadear no começo de cada segunda linha, e assim por diante. Como o soneto tem 14 linhas, o total de combinações possíveis é 10 elevado à 14a. potência, o que dá os tais cem mil bilhões.

A edição original do hiper-soneto era caríssima: cada verso de cada soneto era impresso numa tira de papel separada, as quais eram presas à encadernação de tal forma que podiam ser folheadas independentemente, para a frente e para trás. Cada mudança destas produzia a leitura vertical de um soneto diferente de todos os outros. A publicação desta curiosidade literária foi em 1961. Computadores eram algo que só interessava aos criptógrafos do Serviço Secreto, aos militares e à nascente tecnologia espacial. Hoje, contudo, o poema de Queneau se multiplica pela Internet em saites onde basta clicar para que uma combinação, entre os bilhões possíveis, ocorra numa fração de segundo. O soneto resultante precisa ser copiado. Jamais (como no Livro de Areia de Borges) conseguiremos vê-lo novamente.

Quem quiser dê um pulo no saite de Magnus Bodin (http://x42.com/active/queneau.html), que nos dá inclusive a opção de ler os sonetos em francês, inglês ou sueco. Desde 1961 o hiper-soneto de Queneau nos tem feito refletir. Ele mistura criação e acaso. Estimula nossa capacidade de projetar sentido em estruturas produzidas aleatoriamente. Mostra como, para escrever o mais longo poema já produzido pela espécie humana, nem é preciso escrevê-lo todo: basta criar uma matéria-prima e uma lei para multiplicá-la. O hiper-soneto é o milagre dos pães e dos peixes, no limiar entre os universos da Poesia e da Matemática.

0253) Tonheta: vivo ou morto (11.1.2004)




Nada mais parecido com o Brasil do general Médici do que os Estados Unidos do presidente Bush. Talvez nas prisões americanas não se esteja torturando e assassinando indivíduos por terem lido “O Capital” (ou, no caso, o Corão); mas por outro lado Médici, ao que eu saiba, nunca construiu campos de concentração como o que nossos coleguinhas americanos estão mantendo em Guntánamo. A mais recente novidade, contudo, foi divulgada agora no finzinho do ano pela Associated Press. O FBI distribuiu um boletim para 18 mil centrais de polícia no país inteiro instruindo os policiais para prestar atenção, ao revistar suspeitos durante batidas, blitzes, etc., se eles conduzem almanaques.

Segundo o FBI, almanaques trazem informações sobre cidades e Estados, sobre rios, barragens, reservatórios, túneis, edifícios, etc., além de fotografias e mapas. No boletim, escrito em inimitável jargão burocratês, o FBI avisa: “A prática de pesquisar alvos potenciais é consistente com métodos sabidamente utilizados pela Al-Qaeda e outras organizações terroristas que buscam maximizar a probabilidade de sucesso operacional através de cuidadoso planejamento.” Beleza, né? Isso, amigos, chama-se reação freudiana à própria impotência. E me lembra o que um alto oficial da CIA confidenciou a um repórter, logo após o atentado do 11 de setembro: “O mais humilhante de tudo é sabermos que nós jamais teríamos tido a competência para organizar algo assim, e muito menos a coragem de fazê-lo.”

Essas limitações estão sendo compensadas agora (ou pelo menos é isso que eles acham) através da conhecida tática de matar barata com fuzil, ou curar virose com cirurgia. Um sujeito em atitude suspeita e com um almanaque no porta-luvas do carro tem tudo para ser terrorista. Fui consultar meu exemplar de 1999 do “Old Farmer´s Almanac” (meu pai colecionava almanaques, e eu herdei uma beirinha desse gene), em circulação desde 1792. Não vi nada que ameace a segurança nacional da brava América. Tabelas astronômicas de lunações e marés, previsões do tempo, piadas, curiosidades... Nada que não tenha no “Almanaque do Porto”, no “Almanaque Biotônico”, no “Almanaque Mundial”, no “Almanaque do Pensamento” e noutros. Vai ver que foi por isto que a Al-Qaeda nunca conseguiu explodir nada em nosso país.

Eita, Estados Unidos! É dura a vida, hem? 1984, quem diria, aconteceu em 2001. O perigo agora é Antonio Nóbrega inventar de levar para lá seu show “Lunário Perpétuo”. Quando o FBI descobrir que o show se inspira num almanaque sertanejo, vai logo pensar que por trás de Nóbrega está D. Pedro Quaderna, e por trás de Quaderna está Antonio Conselheiro, e por trás de Antonio Conselheiro está Osama bin Laden. E aí danou-se: lá vai o pobre do Tonheta ficar pendurado numa gaiola de ferro em Guantánamo, e pra soltar ele vai ser preciso uma força-tarefa de peixeira em punho formada por Ariano Suassuna, Orlando Tejo e Zé Nêumanne. Aí é que eu quero ver, Donald Rumsfeld!

0252) O leigo (10.1.2004)





(desenho de Saul Steinberg)

O leigo é qualquer um de nós, por mais “profissional especializado” que seja neste ou naquele setor. Saiu do setor, o sujeito é leigo, e está arriscado a pagar todos os micos de quem não sabe da missa um terço ou ouviu o galo cantar mas não sabe onde. 

Todo mundo é leigo em algum momento da vida. Todo mundo está sujeito a fazer uma pergunta idiota, uma pergunta cuja resposta é óbvia para qualquer débil mental, menos para ele. Como a repórter de TV do interior de São Paulo, que foi entrevistar Chitãozinho e Xororó. Apontou o microfone para um deles e perguntou: “Você é quem?” Ele respondeu: “Chitãozinho” E ela, para o outro: “E você?” 

Alguém irá ponderar, com razão, que aí não se trata de ser leigo, mas de ser burro; mas o fato é que uma pessoa intelectualmente prejudicada pode ficar 10 anos praticando uma profissão e nunca deixará de ser leiga.

Uma cena típica do leigo é a daquele filme de Woody Allen onde ele está numa festa e alguém estende para ele um espelho com várias fileiras de cocaína e diz: “Esta aqui é da boa, custou uma nota preta” – e ele dá um espirro gigantesco, levantando uma nuvem de pó. 

Noutro filme, é ele que está num laboratório fotográfico, revelando uma foto; a namorada abre a porta e faz uma pergunta boba qualquer, que ele responde sem se alterar, enquanto rasga a cópia que acabou de ser inutilizada. 

O leigo é aquele cara cheio de boas intenções mas que não dá uma dentro. Frases típicas do leigo são: “Espero não ter interrompido nada importante” ou “Pra quê que serve isto aqui?... ôpa, desculpe.”

Sabemos que um camera-man é leigo quando, ao mostrar um violonista ou guitarrista, ele insiste em focalizar a mão direita, que é “a que está tocando”, em vez da esquerda, a mão que faz os acordes (que nós, pretendentes a músicos, queremos saber quais são). 

Uma vez eu estava num grupo de cineclubistas que manuseava pela primeira vez uma câmara de verdade. Fulano, um dos mais inteligentes do grupo, pegou na máquina e perguntou: “Por onde é que olha? Por aqui?” – e encostou o olho na objetiva. Tivemos a premonição, naquele instante, de que Fulano jamais seria um cineasta.

Quando chega o prato dele no restaurante, o leigo se espanta: “Oi, e era isso?!” 

Você o leva para ver Tiros em Columbine, de Michael Moore, ele comenta, ao sair: “O filme é bom, mas deviam ter botado outro repórter, e não aquele gordo chato.” 

Tudo que ele diz tem lógica, mas uma lógica que não se aplica. Como a história do casal cujo carro atola numa poça de lama. O sujeito acelera, acelera, e as rodas traseiras afundam cada vez mais na poça. Ele pede à esposa: “Desce aí e joga um pouco de terra seca nas rodas, pra ver se elas pegam.” Ela obedece, e ele continua a acelerar, até que percebe que ela está jogando a terra nas rodas da frente. Ele reclama: “É nas rodas de trás!” E ela, imperturbável: “As de trás já estão girando. Quem não consegue girar são as da frente!”





0251) A caridade eletrônica (9.1.2004)




Peço aos estimados leitores que não me mandem emails sobre crianças leucêmicas a quem Bill Gates prometeu 0,15 centavos de dólar por cada email beneficente enviado em seu nome, ou correntes sobre velhinhas entubadas necessitando de um tipo de sangue raro que só pode ser encontrado via Internet. Esta praga da caridade eletrônica tem sido uma das coisas mais irritantes da última década, e o mais cruel dessa palhaçada é que de cada 10 mensagens com fotos de crianças raptadas do jardim enquanto a babá era distraída por um membro da quadrilha que lhe pedia informações sobre um endereço enquanto os outros colocavam o bebê num carro preto com placas frias para levá-lo até uma clínica clandestina de extração e venda de órgãos... peraí, onde era mesmo que eu estava? Bom, de cada 10 mensagens destas uma pode ser verdadeira.

A pista que entrega, a digital do criminoso, a nadadeira do tubarão é a frase: “Envie esta mensagem para todos da sua caixa postal”. Este é o objetivo do trote: encalhar as vias eletrônicas, e não me pergunte para quê. Deve ser pela mesma razão por que alguns garotos escangalham orelhões, e outros passam trotes telefônicos perguntando “cadê o Mário”. Delete essas armadilhas, caro leitor. Não vale o raciocínio de que é melhor acreditar em tudo porque alguma coisa pode ser verdade. Pedidos verdadeiros sempre fluem por outros canais além do spam. Se alguém raptasse um filho meu, eu não me limitaria a botar a foto dele num email, mandar “para todos da minha caixa postal” e ficar no sofá assistindo Flamengo x Criciúma. Eu iria à luta por todos os meios imagináveis.

Esse negócio de caridade eletrônica é engraçado. Sem esforço, meu amigo, até eu sou bonzinho. Me lembro de uma frase que vi num almanaque quando era pequeno: “O que você faria, se tivesse certeza absoluta de que ninguém jamais ficaria sabendo?” Eu teria uns dez anos mas esta frase me ensinou muitas coisas úteis sobre meu caráter e sobre quem eu realmente sou. Pois a frase da moda hoje em dia é: “O que você faria, se isto não lhe exigisse o menor esforço, mas lhe desse uma sensação de boa-ação cumprida?” Creio que a resposta é: repassaria todos os emails pedindo ajuda para os gêmeos indonésios que têm um tipo raro de câncer e precisam de um milhão de mensagens enviadas ao Hospital Não-Sei-das-Quantas em Johannesburgo, que fará de graça a cirurgia dupla.

Não se iludam, amigos. Caridade sem esforço não existe, é contra as leis da Natureza, é pior do que o Moto Perpétuo. E vejam bem, eu não me acho um sujeito caridoso. Quando um garoto me chama de Tio e estende a mão, eu lhe dou algumas moedas que por acaso tenha no bolso, mas este gesto não tem caridade legítima: é um suborno “light” para que ele lembre de minha cara e não me assalte quando estiver com 1,80m de altura. Há um milhão de ações de caridade real esperando quem as encare. Delete o email e vá à luta. (Isso vale pra mim também.)


0250) Prolixidade (8.1.2004)




“Prolixidade” poderia ser definida como uma das características mais marcantes da nossa cultura contemporânea, e que consiste, basicamente, em empregar o maior número possível de palavras ao tentar exprimir verbalmente uma idéia, por mais simples que esta seja, sendo que essas palavras, em sua maior parte, submetidas a uma análise fria e objetiva, revelam-se como totalmente desnecessárias ao contexto, uma vez que não são indispensáveis para que o leitor consiga apreender a idéia exposta.

O exemplo acima talvez deixe claro para o leitor o quanto é fácil mergulhar nas ondas sedutoras do miolo-de-pote. A conversa que não diz nada, a encheção de linguiça, o nariz de cera. 

Jornalista adora isto, político mais ainda, e escritor, este então nem se fala. Grande parte da nossa literatura (não falo da paraibana; falo da literatura mundial) foi posta de pé por indivíduos que nasceram com esta mais terrível das maldições: a facilidade para escrever. 

Tem gente que escreve sem fazer esforço. Escreve como quem passeia, como quem cantarola, como quem respira. Não existe maior embriaguez para a alma do que fazer uma coisa com facilidade. 

É como esses jogadores que têm jeito para driblar. O cara pega a bola na intermediária, sai driblando na direção da área, mas aí a zaga o encurrala, e ele volta, driblando ainda, rumo sudoeste, passa por dois companheiros sem vê-los, faz um zigue-zague, dribla mais dois, passa perto da órbita da meia-lua, recebe combate, volta driblando para o meio de campo... 

Uma vez, quando Renato Gaúcho jogava no Flamengo, contei doze dribles sucessivos, nenhum dos quais na direção do gol.

Umberto Eco tem algumas páginas interessantes sobre a estética literária do romance de folhetim. Ele sugere que aquele estilo, cheio de rodeios, repetições e encheções de linguiça, tinha não somente a finalidade de ajudar o autor a encher as tantas páginas que precisava entregar por dia ou por semana. Aquele era o ritmo narrativo do folhetim, onde o autor se deleita em prolongar o prazer da escrita, e o leitor faz o mesmo com o prazer da leitura. 

A consequência disso, contudo, foi que cada geração de narrativas saía mais adiposa do que a anterior, e foi precisa a lipoaspiração modernista para acabar com tanto “arrodeio”. 

Os romances britânicos do século 19 tinham em torno de 500/600 páginas. Vai ver que a ascensão do conto como gênero literário, nestes 150 anos, foi uma espécie de reação a modelos tão caudalosos.

A prolixidade, em si, não é um defeito. Ela pode ser usada com função estética. Cervantes é prolixo, Rabelais é prolixo. Guimarães Rosa, que trabalhava com este mesmo software de origem barroca, começou prolixo e foi afinando. 

O que ocorre é que entre nós, no País dos Bacharéis, há um número desproporcionalmente elevado de prolixos sem talento, prolixos insuportáveis, prolixos que não dizem nada; lê-los é caminhar numa estrada pedregosa que dá voltas e voltas e nunca chega a lugar nenhum.







0249) O Budista Tibetano (7.1.2004)




Um Budista Tibetano me disse certa vez: “Se você jogar 100 sementes num roçado, e apenas uma delas brotar, você deve considerar isto uma vitória por 1x0, e não uma derrota por 99x1”. 

Podemos extrair diferentes lições desta parábola. Uma delas é que as vitórias são mais importantes do que as derrotas. Ou, talvez, que às vezes a gente considera derrotas o simples fato de que não conseguiu o que queria, e isto é uma precipitação. 

Se você está no ponto do ônibus e passam vários outros ônibus antes do que você está esperando, você não deve considerar cada um desses eventos como uma derrota pessoal, senão quando o ônibus de verdade chegar você já está tão arrasado que acaba se jogando embaixo dele.

Já pensou que catástrofe seria o futebol se cada vez que o centroavante chutasse para fora isto fosse computado como um gol do adversário? (O tênis, por exemplo, é assim.) 

Devemos valorizar as nossas bolas-dentro, por mais dúbio que seja este conselho, dito desta forma. Devemos valorizar nossos triunfos, por menores que sejam. As vitórias são mais difíceis do que imaginamos. A principal lição sugerida pelo Budista Tibetano é de que nesta vida o normal é que nada dê certo, portanto cada coisa que dá certo precisa ser valorizada com muito carinho, como se fosse uma pedra preciosa, ou como se fosse a última fêmea de uma espécie em extinção.

Sou meio desconfiado com essas filosofias pseudo-otimistas de que “todos nós somos irmãos, todos somos iguais...” Dá a impressão de que tudo no mundo é fácil, que a vida é uma água-de-coco, que a comunicação entre os seres humanos é tiro-e-queda. Pois não é não, viu? 

Minha teoria científica sobre a humanidade é que somos uma raça de chimpanzés ligeiramente mais evoluídos porque uma civilização alienígena implantou chips cibernéticos em nossos cérebros, além de softwares que nos possibilitaram inventar a roda, o fogo, o alfabeto, a agricultura... O problema é que os chips são todos diferentes, e os softwares também: são fabricados na Bulgária, na Índia, no Japão...

O mundo é, portanto, uma Torre de Babel, ninguém se entende, mesmo quando usa o mesmo dicionário e a mesma gramática. 

Em vez de termos como certa e garantida a comunicação entre as pessoas, devemos saber que elas estão se desentendendo até quando pensam que estão de acordo. Devemos nos esforçar, perguntar muito, escutar mais ainda, conferir o tempo todo, fazer força para entender. Nada cai do céu, nada nos é dado de graça. 

A proximidade humana é ilusória. Mesmo duas pessoas de mãos dadas, olhando para o mesmo céu estrelado e escutando a mesma música, estão pensando em coisas completamente diferentes. 

Eu sei que é preciso transpor esses abismos, mesmo levando em conta que no meu crânio está implantado um chip ucraniano, e minha consciência é um programa tcheco pirateado na Argentina e comprado no camelódromo da Praça da Bandeira.






0248) Terroristas (6.1.2004)




Na virada do ano, acompanhei pelos jornais as medidas de segurança dos EUA durante as festas de Ano Nono. Nos pontos turísticos ou estratégicos do país foi montada uma vigilância sem precedentes, o que me deixou matutando uma coisa. Tudo bem que quase um milhão de pessoas romperam ano em Times Square, e que explodir uma bomba ali teria impacto no mundo inteiro, durante anos. Seria equivalente a derrubar as torres do World Trade Center. Mas, será que valia a pena se arriscar a passar por todo aquele esquema de segurança? Será que era obrigatório, para um terrorista, atacar justamente no ponto mais bem vigiado?

Assim como o serial-killer, o terrorista tem como principal arma a surpresa. E por isto mesmo ele procura repetir o “modus operandi” que deu certo da vez passada. Repetindo a tática, ele aumenta sua vantagem, pois está fazendo algo que já fêz e já deu certo, enquanto que a vítima está passando por aquilo pela primeira vez. No caso do terrorista, contudo, a “vítima” não são as pessoas que morreram no atentado anterior. É um país, é um governo, e este tem memória, adquire experiência, e pode se preparar contra ataques semelhantes. Vai ser muito mais difícil hoje sequestrar um avião do que era até o 11 de setembro. Claro que ali rola muita incompetência, mas a facilidade que os sequestradores tiveram daquela vez dificilmente vai se repetir.

Fico pensando, então: para que atacar justamente nos locais mais vigiados, e no momento em que a vítima está mais alerta? Por que correr o risco de abortar um golpe? Se eu fosse um terrorista da Al-Qaeda e quisesse estragar o reveion dos americanos, eu atacaria por outro lado. Esqueceria Nova York, Los Angeles, Washington, Disneylância, Golden Gate, e outros alvos óbvios. Mandaria uma equipe (ou várias) ir morar numa cidadezinha (ou várias) dessas bem pacatas, bem simples, no interior de um Estado qualquer. Eles ficariam morando ali, disfarçados sei lá de que, como cidadãos comuns. E ao longo dos meses iriam adquirindo, de pouquinho, o material necessário para preparar um carro-bomba como aquele que os terroristas da direita americana usaram no edifício de Oklahoma. Nada de comprar dinamite na véspera do Natal. Tudo começaria muito antes, e quando entrasse dezembro e o FBI começasse a preparar a vigilância, tudo já estaria pronto.

Surpresa é a palavra chave? Pois se cair uma bomba em Nova York ou Washington, hoje, o americano vai sentir tudo, menos surpresa. Me arrisco a dizer que o pensamento mais reconfortante nos lares americanos de hoje é quando um casal bota os filhos para dormir, numa cidadezinha como Kalamazoo, Springfield, Big Creek, ou coisas parecidas, e pensa: “Aqui, estamos seguros. Se houver algum problema, vai ser na Estátua da Liberdade.” O que sentiriam essas pessoas se de repente explodisse uma bomba no centro de uma cidadezinha de 20 mil habitantes, igual à sua?

0247) Marcas de fantasia (4.1.2004)




Quando a gente vê letra de música falando num produto qualquer, fica logo desconfiado. Será merchandising? Será propaganda? Na adolescência, eu ficava maravilhado e desnorteado com o fato de João Gilberto dizer, com aquela vozinha inocente dele: “Fotografei você na minha Rolley-Flex, revelou-se a sua enorme ingratidão...” Longas polêmicas noite adentro: quanto será que a Rolley-Flex pagou a Tom Jobim e Newton Mendonça, os autores de “Desafinado”, por essa propaganda? “Mas não é propaganda,” insistia alguém, “é um novo conceito de letra de música, onde se pode falar de todos os aspectos que constituem a sociedade moderna...” E haja discussão, e nada do dia amanhecer.

Aí veio Caetano Veloso, com “Alegria, alegria”, falando: “Eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento...” Ora, falar na poção-mágica-do-capitalismo-ianque em plena época da ditadura militar era pedir para ser crucificado, excomungado, e fuzilado no paredão, tudo ao mesmo tempo. Que ousadia era aquela? Me lembro que Rômulo Azevedo desmentiu que fosse aquela a primeira vez que o sacrilégio era cometido, pois Luiz Gonzaga já tinha cantado, em “Siri jogando bola”: “Vi um jumento tomar vinte Coca-Cola, ficar cheio que nem bola, e dar um arroto de lascar, lá no mar...” Os Mutantes não apenas compuseram um jingle para a Shell, “Algo Mais”, como também o colocaram como uma das faixas de seu segundo elepê. Jingle é música? Não sabíamos. Ninguém sabia. A esquerda era contra. Os poetas concretos de São Paulo eram a favor. O jogo está na prorrogação até hoje, e o gol-de-ouro ainda não saiu.

O saite American Brandstand dedica-se, há quase um ano, a rastrear menções de marcas de produtos em letras da música popular. As estatísticas são curiosas. (Quem quiser ver tudo, pode ir para: http://www.lucjam.com/brand03.html) Engana-se quem pensar que as marcas mais óbvias são as mais citadas: não há nenhuma citação à Coca-Cola e apenas uma ao MacDonald´s. As canções que ocuparam os 20 primeiros lugares da Billboard, em 2003, mencionaram um total de 82 marcas diferentes. Das 111 canções que ocuparam essas primeiras colocações, 43 tinham marcas citadas em suas letras. A marca mais citada foi Mercedes Benz, que apareceu 112 vezes, e o artista que citou mais marcas foi o rapper 50 Cent. O recorde de marcas citadas numa única música, contudo, é de Lil´Kim, que em “The Jump Off” citou nada menos que 14 produtos.

Citar marcas, explica o saite, é o modo mais rápido de definir o próprio status social, ou de projetar suas aspirações a um status. Mais do que merchandising onde os artistas recebam pagamento pelo anúncio, o que existe são “alianças estratégicas”. Mais do que no rock, é no mundo do rap e do hip-hop, estilos de letras mais voltados para o aqui-e-agora, que a citação de marcas predomina. E uma tendência recente é a de artistas que criam suas próprias marcas e as divulgam insistentemente em seus próprios discos.

0246) O romance da mentira (3.1.2004)




(na foto: Hercule Poirot)

Boto minha mão no fogo como uma percentagem impressionante desses romances policiais clássicos, tipo Raymond Chandler ou Agatha Christie, tem como pontapé inicial uma mentira que um personagem diz para outro, e que desencadeia toda a trama. 

No caso dos livros sobre detetives particulares, por exemplo, é quase sempre uma cliente bonita que procura o detetive durão, conta-lhe uma história meio desconchavada, paga-lhe um bom adiantamento, deixa em aberto algumas possibilidades eróticas a curto prazo, e some. O detetive, acreditando nela, começa na página seguinte a meter-se numa encrenca atrás da outra.

O leitor terá notado que nas primeiras linhas coloquei num mesmo saco dois autores que são clássicos, mas de escolas diferentes. Chandler é o primeiro grande estilista literário das chamadas histórias policiais “hardboiled” norte-americanas. Agatha Christie é o antípoda disto: uma escritora apenas mediana, oriunda de uma família inglesa bastante bem-de-vida, e criada na tradição do romance de mistério britânico. 

Nos romances onde ela usa o detetive Hercule Poirot, acontece um crime, há numerosos suspeitos, Poirot interroga todos, e cada um deles conta uma ou várias mentiras. Cabe a Poirot saber quem está mentindo, qual é a mentira, qual é a verdade correspondente, e se a mentira tem a ver com o crime. Multiplique essa situação por 8 ou 10 suspeitos, e você tem o romance de 300 páginas que “Dame” Agatha passou a vida escrevendo.

Um detetive de romance não apenas tem que esclarecer um crime violento e misterioso, mas precisa também limpar um mato danado para chegar a essa solução. Porque todos mentem: os suspeitos, as testemunhas, todos os envolvidos têm algum motivo para contar uma mentira que só na página 87 vai ser percebida pelo detetive, o qual vai ter então que voltar atrás e refazer todas as suas suposições, levando em conta os novos fatos. 

É um vai-e-vem familiar aos cientistas, que em seus laboratórios estão sempre remanejando hipóteses, corrigindo o rumo, alterando suas deduções de acordo com os últimos fatos comprovados.

Não é só o criminoso: todos os personagens de um romance policial mentem para o detetive. Uns por medo, para ocultar detalhes que possam comprometê-los. Outros, por motivos pessoais que nada têm a ver com o crime, e que por isso mesmo eles acham que não são da conta da polícia. Outros porque querem proteger uma terceira pessoa. Outros porque querem incriminar uma quarta. Outros na verdade não estão mentindo, estão apenas interpretando erradamente alguns fatos, e induzem o detetive a incorrer no mesmo erro. 

Por isso que os bigodes de Hercule Poirot são longos e pontudos: ele ouve o pessoal falar, e fica enrolando o bigode, olhando, pensando... Nesses romances, a maioria das confusões e dos mal entendidos são produzidos pelos inocentes, que em geral metem os pés pelas mãos. O culpado planeja tudo para precisar mentir apenas o mínimo indispensável.





0245) Superstições (2.1.2004)




Escrevo isto na véspera do reveion. Minha cozinheira pediu que eu comprasse bacalhau para a ceia. Respondi que era melhor fazer um frango. Ela se assustou: “Você tá doido? Frango cisca pra trás! Dá azar!” Como eu já tinha ouvido falar nessa lenda, improvisei uma resposta. “Pelo contrário! Você sabia que na antiga China só se comia frango, na véspera de Ano Novo? Eles acreditam que as aves que ciscam pra trás dão sorte, porque elas estão jogando os ciscos e os problemas miúdos para o passado, e limpando o caminho à frente, para um Ano Novo cheio de paz e prosperidade!” Ela arregalou os olhos e fêz o frango. Que foi devidamente jantado, e até agora não deu azar nenhum, como aliás nunca deu nos anos anteriores. (Ou quem sabe deu azar, sim, e é por causa dele que Gisele Bundchen até hoje não respondeu meus emails).

A ciência é unânime em afirmar que as superstições são uma espécie de placebo, remédios que não fazem nada de bom nem de mau, fisicamente, mas que, quando a gente acredita neles, têm efeito psicológico positivo ou negativo. Eu não acredito em vudu ou em magia negra, mas confesso que ficaria incomodado se, toda vez que eu passasse na minha rua, visse um sujeito todo de preto na calçada, recitando coisas em latim, degolando galinhas e derramando o sangue em cima de um boneco com a minha cara e as minhas roupas, com uma estaca cravada no coração. Não tem ciência que tranquilize o sujeito, não é mesmo?

A melhor maneira de desmoralizar essas crenças é atribuir-lhes o efeito contrário: e este talvez seja o conselho mais importante que deixo para a Humanidade. Se ficar somente este, já me considero um homem realizado. Quem foi que disse, por exemplo, que passar por baixo de escada dá azar? Pelo contrário! O momento em que estamos passando por baixo de uma escada é aquele em que estamos mais protegidos contra a queda casual de um tijolo, uma tábua, qualquer coisa que caindo do vigésimo andar dá uma dor de cabeça danada no cidadão.

Sobre a questão do número 13 eu nem preciso me estender muito, uma vez que, por motivos óbvios, é o número mais propício e bem-afortunado do vocabulário matemático. Mais interessante é a questão do gato preto, tido como de mau agouro. É um preconceito sem razão. A origem deste mito é a mesma do mito das bruxas na Idade Média, as bruxas montadas em vassouras e acompanhadas por gatos pretos. Já foi provado que durante as épocas de peste eram sempre essas mulheres que não adoeciam, o que atraía a suspeita de que fossem elas as causadoras da doença. Não eram: eram mulheres que tinham o hábito (raro naquela época) de varrer a casa, e tinham gatos, que comiam os ratos, que transmitiam a peste. Por isto, sobreviviam. E elas e os gatos pegaram a má fama, totalmente injusta. Como se vê, qualquer superstição, qualquer crença baseada em argumentos meramente simbólicos, pode ser desmontada com uma reorganização de símbolos. Sejamos positivos, pessoal. E feliz 2004.

0244) Beleza medonha (1.1.2004)




Estou me deleitando e me instruindo com a leitura das Estórias de Cabedelo, contos populares recolhidos por Altimar Pimentel. É um dos numerosos volumes do trabalho que Altimar e outros pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Documentação Popular da UFPb vêm realizando há anos com os contadores de histórias de nosso Estado. 

Este projeto já revelou uma narradora notável como Luzia Teresa, de cujas narrativas já saíram dois volumes bem encorpados. 

Os contos populares são uma coisa curiosa. São aprendidos, preservados e passados adiante por gente simples do povo: lavradores, empregadas, donas de casa, pessoas muitas vezes analfabetas, mas possuídas por aquela verve e aquele amor pela narrativa que hoje encontramos tão pouco em nossas classes médias. 

A maioria dos nossos universitários (e dos doutores em que eles se tornam) é incapaz de contar do começo ao fim o filme que assistiram ontem. E Luzia Teresa morreu com 74 anos sem ter contado todas as histórias que sabia: a UFPb conseguiu registrar apenas 242.

Em suas notas às Estórias de Cabedelo, Altimar registra uma expressão bem nordestina: 

“Sei que depois foi para um quarto, estava uma cama bonita medonha...” 

É bem nosso este uso da palavra “medonho” como adjetivo intensificador (não sei se os gramáticos usam este termo; não tem problema, eu uso). “Medonho” quer dizer uma coisa muitíssima: um calor medonho, uma preguiça medonha.... 

A palavra, no entanto, é derivada de “medo”: medonho é tudo aquilo que provoca medo. O Dicionário Houaiss, curiosamente, registra apenas os significados negativos: “atroz, execrável, revoltante, hediondo, detestável...” 

Mas a certa altura brota no verbete o sentido que, em nossa linguagem popular, essa palavra assume: “difícil de ser suportado”. Assim, de vez em quando surge da boca de um narrador popular uma expressão tipo: “Aí quando eles saíram da floresta viram lá adiante um castelo bonito que era medonho!”

Mais do que uma simples curiosidade vocabular, existe por trás de expressões assim um mergulho instantâneo na medula da vida e da mente humana. E isso é o tom, é o diapasão de toda a arte popular. Beleza e terror andam ali de mãos dadas. O conto de fadas popular é um mostruário de heroísmos e crueldades, gestos de bondade e chacinas brutais. O encantamento está sempre a um passo do terror. 

O narrador popular pode não conhecer o conceito de “numinoso” popularizado por Jung: “o inexprimível, misterioso, tremendo, o totalmente outro, propriedades que possibilitam a experiência imediata do divino.” 

Para ele, no entanto, a beleza esplendorosa e a Morte estão fundidas num mesmo holograma, onde cada uma se transforma na outra a cada instante. A Beleza, quando passa de um certo grau, provoca medo. A visão de uma “princesa bonita medonha” provoca em nós mais do que um prazer estético: provoca o terror do abismo. Sabemos que aquela Beleza é o mar de onde nunca se retorna; e é com terror e êxtase que ali mergulhamos.